Texto de Daniel Sottomaior

Jornal do Brasil - Quarta-feira, 01 de Abril de 2009
Um acordo contra a cidadania
Daniel Sottomaior - PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ATEUS E AGNÓSTICOS
No último dia 13 de novembro, o presidente Lula e o bispo de Roma assinaram um acordo entre o Brasil e a chamada Santa Sé, um dos órgãos de representação máxima da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR). O documento, que deveria ter sido objeto de amplo debate nacional, sintomaticamente só veio à tona depois de assinado. Mais alarmante ainda foi o fato de que a mídia se impôs um amplo silêncio sobre o assunto.
De certa maneira, eles têm razão: cachorro mordendo homem não é notícia; notícia é quando homem morde cachorro. Embora, ao menos no papel, o Brasil seja um Estado laico desde o século retrasado, a laicidade nunca foi um valor plenamente incorporado a nenhuma das democracias ou ditaduras republicanas. Nosso dinheiro estampa uma mensagem religiosa, e os prédios públicos dos três poderes, nas três esferas, incluindo Planalto, Congresso e Supremo Tribunal, ostentam símbolos religiosos. Nossos juízes sentem-se livres para "sugerir" que os presos em liberdade condicional tenham alguma religião, e ainda fixar que religião deve ser essa. E nada disso é notícia, nem provoca ação das autoridades.
O quadripé de universalidade de violações, desconhecimento da Constituição Federal (CF), permissividade com tudo que vem da religião e sobretudo uma caprichada vista grossa das partes indevidamente beneficiadas, vem anestesiando a crítica da sociedade e dos seus quatro poderes para todos os avanços da Igreja sobre o Estado. Mas é preciso mudar esse estado de coisas se quisermos levar minimamente a sério nossa lei máxima e caminhar para uma liberdade religiosa de fato.
Muitos estranharão a idéia de que não existe liberdade religiosa plena no país porque não vive as limitações na própria pele. Mas basta utilizar a regra de ouro para entender a gravidade da situação. Imaginemos, por um instante, um Brasil levemente diferente cuja moeda dissesse "Ogum seja louvado", cujos tribunais ostentassem estrelas de Davi e que assinasse acordos com a Igreja Universal do Reino de Deus. Se isso causaria escândalo nacional, também deve ser escândalo o atual acordo com qualquer outra igreja ou culto.
Mas escândalo pelos motivos certos: não porque a estrela ou Oxum seja maior ou menor aos olhos do Estado, ou porque as crenças sejam minoritárias, mas porque um Estado democrático de fato simplesmente não tem o direito de distribuir preferências ou rejeições, materiais ou ideológicas, a qualquer religião, assim como ao ateísmo. Quando o Estado toma essa iniciativa, na verdade são os servidores públicos que estão fazendo da sua crença particular uma política pública. E o acordo em questão é um dissimulado rol de preferências do Estado brasileiro sobre a Igreja Católica e seus fiéis, em detrimento de todos os demais grupos e cidadãos.
Se o acordo simplesmente garantisse os direitos que a lei já concede à Igreja, ele seria desnecessário e redundante. Se ele existe é para ir além da lei, apesar da linguagem enganadora do texto. O art. 8º, por exemplo, garante à ICAR o que já está estabelecido em nossa lei maior, que é a assistência aos seus fiéis em quartéis e hospitais. Ora, os sacerdotes de cultos afro-brasileiros são rotineiramente proibidos de exercer esse mesmíssimo direito, barrados em hospitais e em capelanias militares, e a lei atual não lhes serve de nada. Reafirmar o direito dos que sempre o exerceram enquanto se esquece os que nunca o conseguiram é um retrato acabado da perversidade de vários artigos desse acordo.
Mas outros dispositivos vão além. O art. 6º, por exemplo, determina que o Brasil e a Sé de Roma "continuarão a cooperar para salvaguardar, valorizar e promover a fruição dos bens, móveis e imóveis, de propriedade da Igreja Católica". Esse é um direito que nenhum outro grupo tem e que selará a manutenção da Igreja pelo Estado brasileiro às custas de contribuintes de todas as crenças e descrenças, obviamente impedidos de buscar acordos semelhantes pois só a ICAR tem personalidade jurídica para tanto. Vários outros artigos caminham no mesmo sentido.
É imperioso que a nação se mova para impedir a consumação desse acordo. Para se tornar efetivo, ele precisa ser aprovado pelo Congresso, onde agora tramita. É dever de todos se informar, mobilizar, mandar cartas aos seus deputados e senadores, e procurar o judiciário, como já está sendo feito. Não se trata de uma iniciativa de negação da religião, mas de preservação das liberdades individuais e da lei, com apoio de amplos setores da sociedade, em respeito à sua pluralidade. E os afortunados indivíduos que sentem não ter nada a perder com o acordo devem se lembrar sempre da regra de ouro: se não por si, que o façam pela cidadania.

Comentários

Tom Riddle disse…
Deveras interessante.
"Não se trata de uma iniciativa de negação da religião, mas de preservação das liberdades individuais e da lei, com apoio de amplos setores da sociedade, em respeito à sua pluralidade."

Ponto importante. Acredito que será difícil para a compreensão de determinados indivíduos que, evidentemente, tratam de "atirar para todos os lados".

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