Juli Zeh no Traçando Livros de hoje
Minha coluna na Gazeta do Sul de hoje. Detalhe para o anunciante. Será que foi intencional? Aqui, no site do jornal: http://www.gaz.com.br/gazetadosul/noticia/424657-corpo_sao_mente_nem_tanto/edicao:2013-09-18.html
Corpo são, mente nem tanto
Um país sem nome,
num futuro próximo, é controlado pelo Método, um sistema de governo “que
objetiva garantir a cada indivíduo uma vida longa, sem perturbações, isto é,
uma vida saudável e feliz. Livre de dor e sofrimento.” Toda a população é
monitorada para que nenhum tipo de doença se propague. Porém, a liberdade
também é cerceada, pois quem não cumpre as normas acaba sendo condenado a penas
como o congelamento. Mia Moll, uma bióloga defensora do Método, tem suas
convicções à prova depois que seu irmão, contrário ao status quo, é injustamente condenado por estupro e depois é
encontrado morto: cometeu suicídio para escapar da opressão.
Corpus delicti: um processo, da escritora alemã Juli Zeh (Record, 254 páginas, tradução de Marcelo Backes) poderia
ser comparado a tantos romances distópicos que retratam governos controladores
da vida dos indivíduos, como 1984, de
George Orwell, ou Admirável mundo novo,
de Aldous Huxley. Sua proximidade é maior, porém, com a norte-americana Ayn
Rand (1905-1982), que em obras como Anthem (Hino, em português), faz a apologia ao indivíduo e critica
a ditadura do coletivo que trata o homem como uma simples peça que deve
funcionar apenas com a máquina toda. Sozinha não tem nenhuma serventia e pode
ser descartável. “Iriam me obrigar a pensar, a dizer ou fazer determinadas
coisas. Mas a única exigência que eu faço é ser dono de minha realidade
pessoal”, afirma Moritz, o irmão de Mia.
Mia Moll é julgada e
condenada, conforme ficamos sabendo na reprodução do veredicto já no início do
romance. O enredo mostra os motivos que desencadearam esse processo, que tem na
figura do representante midiático do Método, Kremer, o algoz principal.
Clássico exemplo de quem não tem limites éticos para comprovar suas ideias e
não deixar aparecer nenhuma falha, é autor de um best-seller, A saúde como princípio de legitimação
estatal, que serve de base para o regime. Mia acredita ser ele o responsável pela morte de Moritz e trava
alguns debates com o líder, que aparentemente baixa a guarda para distorcer as
falas e manipular informações que ela fornece, colocando contra ela parte da
população, que antes começava a admirá-la.
Juli Zeh nasceu em
1974, na Alemanha. É advogada e escreveu também A menina sem qualidades, adaptado para uma série televisiva no
Brasil. Há uma diferença muito grande entre as duas obras. Enquanto Corpus delicti é mais sucinta, com
frases e capítulos curtos, seu outro romance é mais extenso em suas mais de
quinhentas páginas e composto por frases complexas, dialogando, também na profundidade dos temas, com
a obra maior de Robert Musil, O homem sem
qualidades. Além disso, edição brasileira de A menina sem qualidades foi bem mais caprichada, com amplo posfácio
e glossário escritos pelo tradutor Marcelo Backes, elucidando o jogo narrativo
proposto pela autora (não por acaso seu título em alemão é Spieltrieb, prazer de jogar ou pulsão de jogo). Traz no enredo a
história de dois alunos, Ada e Alev, que chantageiam seu professor,
utilizando-o como se fosse uma peça de xadrez, numa partida que mostra a crise
de valores a que pode chegar a juventude atual.
Pela capacidade da
autora em tratar literariamente temas polêmicos, aliada à síntese narrativa, Corpus delicti deveria atrair um bom
número de leitores, tanto os mais exigentes artisticamente quanto aos que
apenas querem uma boa história não muito longa. É uma boa porta de entrada para
conhecer a obra dessa importante escritora contemporânea, que ainda terá nos
próximos meses outro romance lançado por estas bandas. Aguardemos.
Cassionei Niches Petry é
professor, mestre em Letras e escritor. Publicou Arranhões e outras feridas
(Editora Multifoco). Escreve regularmente para o Mix e mantém um blog,
cassionei.blogspot.com. Seria
condenado pelo Método, pois não cuida muito bem de sua saúde. Prefere a mente
são ao corpo são.
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