A hora de José J. Veiga
Foto: divulgação da editora
Hoje faz 100 anos que nasceu um dos mais inventivos escritores da literatura
brasileira, José J. Veiga, que infelizmente já nos deixou em 1999. Entre as
homenagens ao autor, a Companhia das Letras inicia a publicação das suas obras
completas, começando pelos primeiros livros,
Cavalinhos de Platiplanto e A
hora dos ruminantes, em edições com capa dura e prefácios inéditos.
Poucos escritores conseguem marcar sua estreia com uma obra-prima. José
J. Veiga conseguiu. Os contos reunidos em Cavalinhos
de Platiplanto foram publicados quando o autor já tinha os seus 44 anos, em
1959, o que explica, de certa forma, a escrita já madura. São histórias
ambientadas no interior de um Brasil em desenvolvimento, mas ainda com suas
superstições, códigos de ética e uma cultura bastante atrasada. As personagens,
geralmente crianças, lidam com o mundo ao seu redor, ora realista, ora onírico,
maravilhoso, fantástico. Enfrentam o mundo violento dos adultos, mas não deixam
de brincar, caso de “A ilha dos gatos pingados”. Ou então lidam com a perda de pessoas queridas
através da fantasia, como acontece no conto que dá título à coletânea.
Chamam a atenção os contos que antecipam um tipo de história que o
escritor desenvolverá mais tarde em seus romances. Nelas, pessoas, não se sabe
quem, invadem o cotidiano de uma cidade, provocando um estranhamento e gerando a
pergunta: “quem são eles?”. Representam o estado opressor? Simbolizam nossos
medos que são exteriorizados? José J. Veiga não nos responde e é esse incômodo
o cerne de sua inventividade. Da primeira coletânea, essa temática aparece em “A
usina atrás do morro” e “Era só brincadeira”.
A hora dos ruminantes, seu primeiro romance,
publicado em 1966, segue essa linha. Na pequena Manarairema, a chegada de
pessoas estranhas que se alojam num descampado próximo à cidade causa um
rebuliço entre os moradores. “Seriam
engenheiros? Mineradores? Gente do governo?” Como se não bastasse, depois
disso, nas ruas acontece uma invasão de cachorros que, assim como aparecem,
desaparecem. Por fim, é a vez dos bois tomarem conta de tudo, impedindo,
inclusive, as pessoas de saírem de suas casas. São cenas das mais impactantes
da literatura brasileira:
“Não se podia mais sair de casa, os bois
atravancavam as portas e não davam passagem, não podiam; não tinham para onde
se mexer. Quando se abria uma janela não se conseguia mais fechá-la, não havia
força que empurrasse para trás aquela massa elástica de chifres, cabeças e
pescoços que vinha preencher o espaço.”
Uma interpretação possível, mas não única,
relaciona o romance a uma alegoria da ditadura que se instalava no Brasil na
época da sua publicação. Sabe-se, no entanto, que a obra já estava pronta em
1964, mas não foi lançada justamente para não ser tomada como uma afronta ao
golpe. A universalidade dos contos de José J. Veiga amplia esse aspecto a todo
e qualquer poder, institucional ou não, exterior ou interior ao indivíduo. É essa
amplitude que nos permite ainda ler e refletir sobre a obra desse mestre da
nossa literatura. Aguardemos as outras reedições.
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