Meu pitaco sobre "Graça infinita", de David Foster Wallace, no Traçando Livros
Com a graça de David
O escritor que criou uma
obra como Graça infinita
(Companhia das Letras, 1.136 páginas) não poderia ter feito o que fez:
enforcar-se na garagem de sua casa, justamente o lugar onde escrevia seus
livros. David Foster Wallace nasceu em 1962 e se suicidou em 2008, mas foi
reconhecido ainda em vida como um dos grandes nomes da literatura de sua
geração nos Estados Unidos. No Brasil, era lido por poucos, na língua inglesa,
em tradução para o português de Portugal ou até mesmo em espanhol, através de
e-books compartilhados na internet. Agora, finalmente chega por estas bandas.
Pensando bem, não dá pra julgar a atitude de DFW (sigla pela qual é chamado por seus
leitores mais fiéis. Não me surpreenderia se alguém começasse a dividir a
literatura em antes e depois de DFW.). Ele sofria de depressão e vivia à base
de medicamentos. Como bem escreveu o tradutor de Graça infinita no Brasil, Caetano Galindo, em um artigo para a
revista Piauí, “ninguém
entende os motivos de um suicida. Ninguém. A única pessoa talvez capaz de
entendê-los é morta pelo ato. Nem mesmo quase suicidas que quase morreram dão
relatos muito racionais e organizados. Eu? Nem tento.”
O romanção Graça infinita foi publicado originalmente em 1996.
Antes disso, DFW havia publicado o romance The
broom of system, que serviu como conclusão de seu curso de graduação, e o
volume de contos Girl with Curious Hair, além de um tratado acadêmico sobre o Rap,
escrito em conjunto com um colega da universidade. Presentes nessas obras estão
a metalinguagem,
os jargões acadêmicos, o vocabulário científico, a criação de palavras, a ironia,
o humor negro, os enormes enunciados e as notas de rodapé que se tornaram características
marcantes do autor.
Não deixe de ler as notas de rodapé.
Algumas são essenciais para o entendimento da história. Faz-se necessário, para
não se perder tempo, a utilização de dois marcadores de páginas, pois as notas
estão no final do romance e são difíceis de localizar. Aliás, não espere nada
fácil nesse livro. Desde o peso para segurá-lo, passando pelas letras pequenas
e chegando à complexidade do enredo, tudo é difícil, chegando a ser chato e
cansativo muitas vezes. O livro é para aqueles que realmente não buscam uma
literatura de entretenimento, apesar de a trama tratar, entre outras coisas, sobre
esse tema. É o que chamo de Literatura com L maiúsculo e que requer um Leitor
com L maiúsculo. Feitas essas ressalvas, vamos à história.
O enredo é ambientado na ONAN, Organização das
Nações da América do Norte, numa época futura, em que as denominações dos anos
são subsidiadas por marcas de produtos, sendo que boa parte dos acontecimentos
se passam no Ano da Fralda Geriátrica Depend. A maioria das personagens – que
são inúmeras – gira em torno dos Incandenzas, uma família feliz ou infeliz a
sua maneira – para glosar Tolstói, também adepto do romanção, mas no século
XIX. O patriarca é James O. Incandenza, cientista e cineasta, produtor de filmes
experimentais, mas chamados de entretenimento, contidos em cartuchos, o que
seria o equivalente às fitas de videocassete dos anos 90, e o principal e mais
misterioso desses filmes é o que dá título ao romance – retirado, por sua vez,
de uma frase de Hamlet, de
Shakespeare – e que, devido à elevada carga de entretenimento, provoca a morte
de quem assiste. James, conforme ficamos sabendo logo no início, cometeu
suicídio metendo a cabeça num forno de micro-ondas – a descrição de como isso
foi possível é impagável. Completam a família a mãe, Avril, diretora da
Academia de Tênis Enfield, de propriedade da família; o filho mais velho Orin,
jogador de futebol americano; Mario, o filho do meio, adolescente com
dificuldades físicas e mentais; e Hal, o caçula, gênio na escola e prodígio
como jogador de tênis, personagem central da história.
As primeiras
páginas me fazem lembrar do clichê do início de muitos filmes hollywoodianos,
em que um estudante é entrevistado para ingressar em uma universidade, sendo
que os diretores estão interessados muito mais nas suas qualidades de
esportista do que nas notas do indivíduo. O comum é vermos promissores
jogadores de basquete ou futebol americano. Em Graça infinita, a história gira em torno do tênis, e Hal passa por
uma fracassada conversa com diretores de uma instituição de ensino superior
onde quer ingressar. Os jogos, de uma forma geral, são importantes na trama,
mas o tênis é talvez uma das principais metáforas para serem decifradas. “Você
compete com seus próprios limites para transcender o eu em imaginação e
execução. Sumir no jogo: romper limites: transcender: melhorar: vencer. (...)
Você busca vencer e transcender o eu limitado cujos limites são a mesma razão
do próprio jogo.”
Há ainda a destacar os outros núcleos que, de certa
forma, se relacionam com os Incandenzas: 1 – Os internos na Casa Ennet de Recuperação de Drogas e
Álcool alimentam outro tema importante do romance, que é o vício, seja o
proporcionado por substâncias tóxicas ou mesmo o proporcionado pelo entretenimento
dos cartuchos. Pode-se dizer que a leitura do romance também é viciante. “Que
quase todas as pessoas viciadas em Substâncias também são viciadas em pensar, o
que significa que elas têm uma relação compulsiva e patológica com o seu
pensamento.” 2 – Os separatistas denominados Cadeirantes Assassinos do Quebéc,
que praticam atos terroristas com intuito de separar o Canadá dos EUA e usam
como instrumento o cartucho com o filme de James O. Incandeza.
Já revelei muitas coisas, por isso paro por aqui,
para não estragar a viagem de quem resolver se embrenhar na mata fechada de
DFW. Fica o convite ao leitor, ou melhor, ao Leitor, que reserve boas horas do
seu dia, durante os próximos meses, nessa experiência infinita. Torne-se um
viciado, se necessário, e saia da leitura em estado de graça.
Cassionei Niches
Petry é professor e escritor. Autor de Arranhões
e outras feridas (Editora Multifoco) e Os óculos de Paula (Editora Autoral). Escreve regularmente para o
Mix e mantém um blog, cassionei.blogspot.com.
Sobre outro livro de DFW: http://cassionei.blogspot.com.br/2012/11/dfw-no-tracando-livros-de-hoje.html
Sobre outro livro de DFW: http://cassionei.blogspot.com.br/2012/11/dfw-no-tracando-livros-de-hoje.html
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