Somos todos Dante
Na página de opinião do jornal Gazeta do Sul de hoje.
Somos todos Dante
Dante Alighieri, para quem não sabe, foi o
poeta italiano que escreveu A divina
comédia, poema épico que narra a viagem do próprio escritor feito
personagem ao Inferno, indo depois para o Purgatório até chegar ao Paraíso,
onde estava sua amada Beatriz. O inferno dantesco é composto por nove círculos
e o poeta os desce um a um, guiado por Virgílio, poeta latino, autor de Eneida. Cada círculo corresponde a
diferentes punições, dependendo do pecado cometido. No último círculo, está Satanás,
devorando os três maiores traidores da humanidade segundo o poema: Judas,
Brutus e Cassius.
Pois descemos o primeiro círculo no final de julho, quando
os servidores públicos do Rio Grande do Sul receberam apenas uma parte do seu
salário, que seria parcelado, conforme as ameaças que já vinham acontecendo.
Ninguém, no entanto, acreditava que isso viria a se concretizar. Como
resultado, paralisações, inclusive dos policiais, professores trabalhando em
turno reduzido e depois uma greve de três dias marcaram o mês de agosto. De
nada adiantou. Recebemos sim a outra parte devida, mas o governador, na sua
inabalável indiferença, já avisava que viria coisa pior.
Estamos agora no segundo círculo. Mais uma vez fomos
surpreendidos ao receber uma primeira parcela, desta feita ainda menor do que a
do mês anterior. O restante, diferentemente da outra vez, não será pago numa segunda
parcela, mas sim em “suaves três prestações sem juros”. O detalhe é que isso
acontece apenas para os servidores do Executivo. O Poder Legislativo e o Poder Judiciário
mantêm seus altos salários intactos. Coincidência ou não, são aqueles que criam
e julgam as leis. Coincidência ou não, não se manifestam sobre o assunto. Quando
o fazem, é com muita discrição.
Devido a isso, a maioria dos funcionários públicos parou de
trabalhar. Mais três dias de greve. Há realização de protestos, tranca-se o
trânsito, palavras de ordem são proferidas, desabafos são escritos nas redes
sociais, essa ágora moderna. Não se vê, entretanto, nenhum abalo nas convicções
do governador. Depois de confirmados nos contrachoques, ops, contracheques os
míseros 600 irreais, ops, reais de pagamento, nosso patrão foi fotografado
dançando sorridente na Expointer.
Reparem que estamos apenas no segundo círculo. Vamos descer
mais. Os professores já decidiram continuar com os braços cruzados, ou melhor,
levantados, segurando cartazes e faixas e usando suas mãos para escrever
artigos para jornais ou desabafos na internet. Tudo é válido. No entanto, se
Dante somente presenciava o sofrimento das almas condenadas, na nossa divina
comédia humana somos nós que sofremos, sem saber, no entanto, que pecados foram
cometidos.
Lá no último círculo estão o grande mal e aqueles que nos
traíram. Esperamos passar por eles. Ainda teremos que passar por um purgatório.
Chegaremos ao paraíso? Não sei. Meu pessimismo e ceticismo crônicos dizem que
não, mas ainda há aqueles que acreditam nas utopias.
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