No Traçando Livros de hoje, Alberto Manguel
Indo além do conhecido
O menino olhava para
as prateleiras de um móvel antigo e via enfileirados os gibis que pertenciam a
seu tio. Não os alcançava e, por isso, a curiosidade por conhecer o que havia
neles só aumentava. Quando descobriu uma forma de pegá-los, arrastando uma
cadeira para poder subir nela, finalmente teve acesso àquele mundo misterioso.
Abriu uma das revistas e os desenhos dos super-heróis, que antes via apenas na televisão
ou nos bonecos de brinquedo, estavam ali, para serem admirados em suas cores e
traços. Porém, as letras e as palavras dos balões ainda eram outro mistério que
precisava ser desvendado. A curiosidade de saber o que estava escrito o levou a
aprender a ler sozinho. E assim passaram-se os anos e novas coisas que surgiam
aumentavam sua vontade de saber mais, de ler mais, de ouvir mais, de ver mais.
Semelhante ao menino
(que por acaso era este que vos escreve), a existência de Alberto Manguel também foi e ainda é movida pela curiosidade. O
escritor argentino, na verdade mais leitor do que escritor, tendo inclusive
trabalhado para o cego Jorge Luis Borges com a função de ser os seus olhos para
ler, já nos mostrou esse percurso em obras como Uma história da leitura, A
biblioteca à noite ou A cidade das
palavras. É, no entanto, no seu mais recente livro lançado no Brasil, Uma
história
natural da curiosidade (Companhia das Letras, 486 páginas), que ele
explica o que é essa tal de curiosidade, por que queremos saber sempre mais,
quais as perguntas que movem o ser humano, quais foram os indivíduos mais
curiosos e qual a contribuição deles para o mundo.
“Cheguei à Divina comédia tarde, pouco antes de
completar sessenta anos de idade”, admite humildemente Manguel, que nasceu em
1948. Sua curiosidade, portanto, não se apaga, mesmo que já tenha lido e
escrito sobre quase tudo. Como não é egoísta, compartilha conosco sua
descobertas, nos conduzindo a conhecer a história da curiosidade assim como a
leitura da Divina comédia de Dante
conduz os capítulos, lembrando que este foi, por sua vez, guiado por Virgílio pelos
círculos do inferno. Guiados pelos três, então, aprendemos, entre muitas outras
coisas, a origem do ponto de interrogação, “enrolado sobre si mesmo como
contestação de um orgulho dogmático”; viajamos com Ulisses que “anseia pelo que
está além do fim do mundo conhecido”; nos encantamos com Eva e Pandora, as primeiras
mulheres de mitologias distintas, mas que têm em comum a curiosidade que trouxe
a punição para os humanos, devido ao “desejo ilícito de conhecer o proibido”; percebemos
a importância da escrita, “a arte de materializar o pensamento”; filosofamos juntos
com Sócrates, que mais perguntava do que respondia, ou melhor, respondia com
perguntas.
“A tentação do
horizonte está sempre presente, e mesmo se, como acreditavam os antigos,
ultrapassando o fim do mundo um viajante caia no abismo, isso não faz com que
nos abstenhamos da exploração, como diz Ulisses a Dante em A divina comédia.” Por isso não nos contentamos com o conhecido,
queremos ir além, por isso terminamos a leitura de Uma história natural da curiosidade e não ficamos satisfeitos, não
nos saciamos. Se deixarmos a busca, deixamos de existir.
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