Um exame que precisa ser reexaminado
O ENEM, Exame Nacional do Ensino
Médio, pode estar com os dias contados, pelo menos nos moldes como está sendo
aplicado. Particularmente, espero por isso, depois de um novo governo ter assumido
o poder. O que era para ser apenas uma avaliação do nível de conhecimento dos
alunos que saem da educação básica acabou, nos últimos 10 anos, “metamorfoseando-se
num inseto monstruoso”, tal qual o personagem Gregor Samsa, da obra de Franz
Kafka, virando um processo de seleção obrigatório e único para muitas
universidades, com os alunos sendo chamados de candidatos, realizando provas
com questões de cunho ideológico acentuado, conduzindo o estudante a pensar do
mesmo modo que os membros do partido que estava no poder, ainda o responsável
pelo exame deste ano.
Uma abordagem rápida da prova de
Linguagens, Códigos e suas Tecnologias nos mostra alguns caminhos estranhos que
o ENEM vem percorrendo, e olha que vou deixar de lado o caráter ideologicamente
tendencioso nessa minha síntese crítica. Foco na parte de Literatura, ou pelo
menos a que envolve escritores, tendo em vista que não há uma separação nítida
entre as disciplinas que envolvem as linguagens (além de Literatura, temos a
Língua Portuguesa, as Línguas Estrangeiras Modernas, a Educação Física e a
Arte, as duas últimas com pouquíssimas questões).
Os autores contemplados são, em sua
maioria, da década de 50 pra cá, alguns, inclusive, desconhecidos até por mim.
Como a prova acontece muito cedo, no começo de novembro, os professores, preocupados
em seguir o conteúdo programático da escola, estão começando a ver esse período
somente agora, nos últimos dois meses de aula. Nas minhas aulas, não cheguei ao
João Cabral de Melo Neto e à Clarice Lispector, por exemplo, dois nomes
presentes de forma merecida. Está certo que as questões são mais
interpretativas, o que é um ponto positivo, mas os alunos vão me questionar:
"professor, o senhor não passou pra gente nada sobre Zorzetti, H.". Terei
de assumir que nem mesmo eu conheço esse escritor (tive que procurar no Google
para saber a quem se refere, porém há poucas informações na internet, muito
menos em livros didáticos). Como vamos adivinhar o que vai cair no exame se não
há um guia de estudos? Ensinamos bastante sobre os contos e romances de Machado
de Assis, no entanto há só uma questão sobre uma crônica dele, no âmbito da
Língua Portuguesa, e mais nada sobre o nosso maior escritor. Falei bastante
sobre Carlos Drummond de Andrade nos últimos dias em sala de aula, o autor mais
citado nas outras provas, lemos e analisamos as poesias dele, mas não houve
nenhuma questão sobre o maior poeta brasileiro. “Ah, mas tem uma questão sobre
o Arcadismo, Cassionei”, dirá alguém, entretanto, caiu um autor deste período que
não é muito estudado, Cláudio Manuel da Costa.
Acredito que a intenção é acabar com
a Literatura como disciplina. A Base Nacional Curricular Comum a coloca como
apêndice de Língua Portuguesa, sendo que já o é em muitos Estados, porém no Rio
Grande do Sul ela ainda tem seu lugar. Aliás, querem acabar com todas as
disciplinas (criticadas pejorativamente como “gavetinhas”), transformando-as em
áreas de conhecimento misturadas e confusas, como se isso fosse resolver os
problemas da educação. Para muitos, as disciplinas são coisa do passado. Querem
enterrar o passado. E estão conseguindo.
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