Janelas indiscretas
O que faria hoje um
sujeito com a perna imobilizada por conta de um acidente, tendo que ficar em
casa, sem poder trabalhar? Acredito que ficaria no seu celular ou no computador
acessando redes sociais na internet e também assistindo à TV. Poucas pessoas
aproveitariam o tempo de molho para ler. No clássico filme de Alfred Hitchcock,
Janela Indiscreta, o fotógrafo Jeff
fica observando as janelas dos fundos da casa de seus vizinhos, como se abrisse
muitas páginas na tela do computador. Passam pelos seus olhos cenas do
cotidiano desses personagens, que o permitem saber suas vidas, que eles não fazem
questão de esconder, achando ou fingindo achar que suas janelas abertas não seriam
bisbilhotadas por ninguém.
Um casal de mais idade
que dorme na sacada devido ao forte calor, demonstra felicidade com seu
cachorrinho, porém, depois que ele é envenenado de forma misteriosa, grita para
toda a vizinhança reclamando da falta de humanidade e companheirismo entre os
vizinhos, como se tivesse escrevendo um textão no Facebook. Dois andares
abaixo, uma mulher solitária finge receber uma pessoa, oferecendo jantar e
bebida ao amigo virtual. No entanto, depois que ele se materializa num encontro
real, percebe que o homem com quem marcou o encontro é um cafajeste que só
queria aproveitar-se dela. Tenta ainda cometer suicídio, mas a bela música tocada
por um dos vizinhos a faz mudar de ideia.
Esse vizinho é um
pianista que tenta criar sua obra-prima e toca trechos para outros ouvirem e o
assistirem através da vidraça de seu apartamento, como se postasse vídeos no
Youtube. Em outro prédio próximo, uma loira de corpo escultural dança com pouca
roupa e de forma sensual, sem se preocupar em fechar porta e janela, como se
estivesse se exibindo numa webcam. No apartamento ao lado, um homem rude, cuja esposa
está supostamente doente, oferta-lhe uma viagem para que ele possa ficar em paz
por um tempo. Entretanto, deixou rastros que denunciaram seu verdadeiro ato,
como alguém achando que apagar arquivos no computador é suficiente para
esconder um crime.
Baseado em um conto
de Cornell Woolrich, Janela indiscreta
é de 1954 e nos permite muitas interpretações. Analisá-lo sob uma perspectiva atual
não é tão absurdo como possa parecer, afinal, o voyeurismo e o poder que ele
proporciona é o tema principal. Gustavo
Bernardo, no ensaio “Janela dos fundos”, uma boa análise do filme publicada em O livro da metaficção, destaca: “O
voyeurismo supõe simultâneos desejo de poder sobre o outro e medo desse mesmo
outro”. Ora, mesmo sabendo que pode ser prejudicial para sua vida, o indivíduo
não faz muita questão de esconder sua vida pessoal, inclusive chega a
escancará-la e tem essa noção, afinal pode ganhar curtidas e comentários que
aumentam sua auto-estima. Por outro lado, quem acompanha a vida das outros sente-se
poderoso, inclusive para criticar, muitas vezes de forma agressiva, se
escondendo em perfis falsos, como o protagonista de Janela Indiscreta que se escondendo na sombra de seu apartamento e
liga anonimamente para o criminoso com o intuito de observar sua reação ao ser
informado que foi visto tentando esconder um crime.
O desfecho do filme
não vem ao caso, afinal já deixei escapar spoilers
que chega (uma forma de demonstrar a superioridade de quem já assistiu frente aos
pobres mortais que ainda não tiveram a oportunidade). Sobre o desfecho da
exibição de vidas nas redes sociais, todos já tomamos conhecimento e geralmente
não é nada feliz. Cometemos, não obstante, os mesmos erros e proporcionamos aos
mal-intencionados armas para nos atacar. Ou então viramos nós mesmos os algozes
e destilamos veneno contra os outros sem medir as consequências.
Carlos Drummond de
Andrade, outro profeta que antecipou as redes sociais, escreveu, lá nos anos 20
do século passado: “Devagar... as janelas olham/ Eta vida besta, meus Deus”. Ou
seja, Camões estava errado séculos atrás: “Mudam-se os tempos”, mas as vontades
não mudam.
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