Uma orgia com Alberto Mussa
Júlio Nogueira saiu
um pouco de sua reclusão, criou perfis em redes sociais e um blog para divulgar
suas críticas, mas logo depois se recolheu novamente. Trocamos, porém,
impressões de leitura por e-mails, tendo em vista que abriguei no meu blog
algumas de suas críticas, sem contar que também esboçou a minha “biografia
precoce não autorizada”, publicada no site Digestivo Cultural. De seu sítio no interior de uma cidade do interior do
Rio Grande do Sul, me pergunta se já terminei de ler Os contos completos, de Alberto Mussa (Record, 398 páginas). “Terminei
a leitura há pouco”, respondi. Prosseguindo o diálogo via internet,
perguntou-me o que achei e respondi que gostei muito.
“Pois olha,
Cassionei”, ele escreveu, “sabes que os escritores brasileiros têm uma
tendência a tratar somente do presente e, quando tocam no passado, não
ultrapassam a barreira do século XX, com honrosas exceções, como a deste
escritor. Quando leríamos algo sobre os índios brasileiros pré-Cabral ou relatos
do tempo da colônia nas obras dos autores contemporâneos? Ele estende a linha
temporal na narrativa brasileira, demonstrando ser um pesquisador, mas que não
deixa de ficcionalizar, que é o que realmente interessa no âmbito literário.
Aliás, ele deixa isso bem claro na sua poética ao comentar os contos. Que te
parece?”
“Me chamou a atenção
isso, mestre. E também a amplitude temática e geográfica. Do jogo do bicho na
periferia carioca, passando pelos terreiros de umbanda e os traficantes, chega
à cultura árabe e todo o seu imaginário, aterrissando também na África. Dos
triângulos amorosos através dos tempos ao canibalismo dos indígenas, registra
também reflexões sobre as linguagens, os jogos matemáticos, a circularidade, os
crimes, o sobrenatural, etc. Vale ressaltar que ele reescreveu suas histórias
publicadas no livro de narrativas Elegbara e desmembrou outras tantas de alguns
romances. Modificou bastante as histórias e as recontextualizou, transformando
num livro diferente dos outros, portanto sem sacanear o leitor, como fazem
alguns escritores que reeditam os livros modificando-os, melhorando-os e
renegando a edição anterior, fazendo assim com que o leitor que comprou a
primeira edição se sinta lesado. Aliás, reescrevi dois contos meus do primeiro
livro e os inseri no terceiro, que será publicado em breve. Aquele que o senhor
não quis ler. Falando em ler, qual a impressão do senhor sobre o leitor Alberto
Mussa?”
“Ele demonstra ser
um exímio leitor, antes de ser escritor. Não reluto em dizer que ele poderia
ser o nosso Borges, não apenas por ser esse grande leitor, mas pela utilização
de histórias, na maioria das vezes orais, de diferentes culturas, numa
apropriação literária em que prevalecem os elementos fantásticos e os enigmas e
jogos intelectuais. É na releitura de clássicos literários, porém, que ele
atinge o máximo da capacidade criativa. ‘A trilogia homérica’, por exemplo, em
que recria a volta de Ulisses para Ítaca, dessa feita localizando o enredo no
Brasil do século XVI. Mussa, na nota explicativa, menciona, provocativamente,
outra versão do mito, ‘que se lê num enfadonho romance irlandês’. Já as
recriações de obras machadianas, em ‘A leitura secreta’ e ‘O princípio binário’,
fecham, com o perdão do lugar-comum, com ‘chave de ouro’ o livro. O primeiro,
em forma de ensaio, traz uma interpretação para o conto ‘A cartomante’. No
segundo, um conjunto de manuscritos propõe uma solução espetacular para o
enigma de Capitu. O tema do duplo, tão caro a Borges, bem como a loucura! ‘Mas
chego à conclusão de que o horror ao próprio duplo é imanente à natureza
humana. Isso talvez explique todo o drama da minha vida’, escreve a autora dos
manuscritos. Jamais teria me passado pela cabeça uma interpretação dessa
magnitude. Não sei você, mas segui a dica do narrador e reli o conto e os
capítulos mencionados de Dom Casmurro.”
“Sim, também segui a
dica. Veja que todos têm a presença do triângulo amoroso e entendo que a
literatura também tem um pouco disso. É o autor, a obra e o leitor, num ‘movimento
pendular’, que dá título à obra de Mussa que aborda somente esse tema.”
“E quando outros
leitores se metem na leitura do outro, refocilamos em orgias, para parafrasear
Drummond.”
“É uma ‘orgia
perpétua’, mestre, segundo Flaubert.”
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