Notas de Cassionei Petry, professor (a respeito de Sant'Anna)


Sérgio Sant'Anna vem desde 1969, com O sobrevivente, realizando uma literatura de alto nível, sem deslizes, diferentemente de muitos autores de sua geração, que não conseguem manter a mesma pegada. Anjo noturno, recém lançado pela Companhia das Letras, traz um conjunto de narrativas (termo que ele prefere no lugar de contos) em que mais uma vez o diálogo com diferentes tipos de arte (pintura, artes plásticas, teatro, música e, por que não, a TV)  unidade aos enredos, além do tom memorialístico. 
Em "Augusta", o primeiro conto, um professor universitário se aproxima de uma produtora musical em uma festa no Rio de Janeiro. Vão depois para a casa dela, onde um quadro pintado pelo antigo morador que se suicidou (o suicídio é um tema recorrente na obra) atrai a atenção dele"uma mulher nua retratada frontalmente, mas com as pernas fechadas, de maneira que o seu sexo não se exibe ostensiva ou vulgarmente". Na altura de um dos seios, uma perfuração feita com faca pelo autor, como se quisesse matar a mulher retratada. A escolha deste conto como abertura do livro é um convite do escritor, como se dissesse: "entre nesta obra de arte, caro leitor, mas por sua conta e risco. Nela estão minhas feridas abertas". 
 "Um conto límpido e obscuro" tem a artes plásticas como tema, visto que o narrador recebe em sua casa uma artista, com quem havia tido um relacionamento, que vem mostrar a ele alguns projetos de instalações, um deles denominado "Menina rezando em uma cama" (e o autor nos informa em uma nota de rodapé que é uma obra de Cristina Salgado, que realmente existe). Aqui temos o desejo de algo fantasioso transformar-se em real, visto que o narrador, através das palavras, tenta materializar o sonho de ter de volta a mulher. 
A terceira narrativa, "Talk show", é a mais divertida, plena de peripécias. Traz à tona a questão da espetacularização do escritor ou a necessidade que ele tem de aparecer para vender, mesmo que ele não queira e prefira viver no isolamento. Célio Andrade é convidado para falar sobre a sua obra literária no programa de TV que Edwina Sampaio apresenta em um canal por assinatura. Pelas características, percebemos que a personagem é inspirada na Hebe Camargo (por exemplo, "é divina" e Hebe, deusa grega da juventude, saca?) e é difícil não ver na figura do escritor o próprio Sérgio Sant'Anna. Célio afirma à apresentadora: "a libido, nem que seja verbal, está presente em todos os meus livros". E é, realmente, um assunto constante na obra de Sant'Anna, inclusive neste Anjo noturno. O título do livro, diga-se, vem desse conto. Uma das atrações do programa de Edwina é uma cantora que está caindo no esquecimento e enfrenta problemas com a bebida. Chegando atrasada, mas a tempo de cantar uma música, cujos versos iniciais são estes:
"Sou anjo 
Noturno 
Sombra perdida 
Pairando nas trevas". 
Os próximos três contos são autobiográficos, memorialísticos, tendência dos últimos livros de Sérgio Sant'Anna. Pelo menos aqui aparecem os nomes reais das personagens, inclusive de Sônia, sua irmã, que também é escritora. Curiosamente, o nome do irmão não aparece. São relatos de um lirismo comovente por um lado, no caso de "A mãe" e "A rua e a casa", e de outro conduzidos por uma perspectiva política, que é o caso de "Amigos", pois boa parte do conto é sobre o início da ditadura militar no país. 
Depois de uma pequena reflexão sobre o pensamento e de uma narrativa em forma de texto de teatro, do qual não gostei muito, o livro fecha muito bem com um tipo de texto costumeiro do autor, quando experimenta a metalinguagem, mais precisamente o "metaconto", refletindo sobre a criação de narrativas, na linha de "Conto (não conto)" e "Estudo para um conto", de obras anteriores. Em "O conto fracassado", o narrador fala sobre um contista que tenta escrever vários enredos, todos fracassados, uma série de histórias que poderiam ter sido e que não foram, para citar de forma distante Manuel Bandeira, que escreveu "Meu último poema", talvez inspiração para o contista. 
"O conto fracassado era híbrido, não tinha um enredo preciso, porque havia pretensões do autor de abarcar vários enredos possíveis. Havia um desejo de salvação pela palavra, de uma procura errática e musical que contivesse múltiplos significados e, por outro lado, um desejo de clareza e precisão." 
Sérgio Sant'Anna, por sua vez, não fracassa. Vem empilhando nos últimos anos pequenas obras-primas como se estivesse em plenos anos 70, época de sua melhor obra, na minha modesta opinião: Notas de Manfredo Rangel repórter (a respeito de Kramer). Num dos contos desse livro de 1973, o narrador escreve sobre os personagens: "Eles se encontram ali, numa página qualquer de um livro empoeirado, na expectativa de um leitor que os leia". Esperemos que Anjo noturno encontre muitos leitores. E que as notas escritas por este professor ajudem no intento. 

Comentários

"Pelo menos aqui aparecem os nomes reais das personagens, inclusive de Sônia, sua irmã, que também é escritora. Curiosamente, o nome do irmão não aparece. São relatos de um lirismo comovente por um lado, no caso de "A mãe" "
Também tenho um conto sobre nossa mãe, visto por outro ponto de vista, o da menina reprimida pela educação que recebe da mãe que não quer para ela (a menina eu) um destino semelhante ao dela, mãe.
Não sei se algum editor aceitaria publicá-lo, mas me parece que seria interessante a mesma história, vivida pelos mesmos personagens, e narrada de pontos de vista totalmente diferentes.
Cassionei Petry disse…
Quem sabe um livro junto com o Sérgio?
Prefiro o meu (vários contos curtos e um conto longo também sobre a mãe e como eu vivi essa história). Faltam apenas alguns arremates ao livro. E um editor, claro, disposto a publicar.

Cassionei Petry disse…
Espero que seja publicado.

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