Crítica sobre "O sol na cabeça", de Geovani Martins


Escrevi no blog do Gustavo Nogy, no site do jornal Gazeta do Povo, uma crítica sobre o fenômeno literário do momento: http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/gustavo-nogy/2018/04/11/muito-sol-na-cabeca-faz-mal/?doing_wp_cron=1523459200.3292529582977294921875


Muito sol na cabeça faz mal
Por Cassionei Niches Petry

Uma mensagem na capa avisa que estamos diante do “novo fenômeno literário vendido para 8 países”. Tento me lembrar: Geovani Martins? Que fenômeno é esse de que ainda não ouvi falar? Aí a deusa Mnemósine aparece: claro, aquele mesmo que surgiu em tudo quanto é caderno de cultura de jornais e revistas, tudo no mesmo dia, o cara de uma favela do Rio de Janeiro. Li um conto dele e não achei lá grande coisa.
Pego o exemplar do livro do fenômeno, O sol na cabeça (Companhia das Letras, 120 páginas), para enfim ler e não me equivocar com a leitura de apenas um conto. Pois é justamente esse texto que abre o livro e o releio. “Rolézim” é um amontoado de gírias que já infestam filmes nacionais, séries e novelas da TV, inclusive o famoso “pega a visão” de um personagem que era chefe de tráfico num dos folhetins de sucesso da Globo. Não por acaso os direitos do livro já foram comprados para virar filme. Nada de novo nisso, portanto. No âmbito da literatura, João Antônio e Rubem Fonseca já usaram (e de forma bem dosada) o recurso das gírias em suas obras nos anos 60 e 70.
Aliás, o Rubão me veio à mente na leitura do segundo conto, “Espiral”. Agora sim numa linguagem mais cuidadosa, pois o narrador, em primeira pessoa, também morador de favela como o do relato anterior, é um leitor (“Nem nos livros conseguia me concentrar.”). Vendo que uma velha fica com medo dele numa parada de ônibus, resolve persegui-la só por diversão, assim como o faz com outras pessoas. Persegue então um homem que depois o observa da janela do apartamento com uma arma automática na mão e o desfecho fica em aberto, num anticlímax. Quem lê Rubem Fonseca, vai entender por que o mencionei.
“Roleta-russa”, por seu turno, tinha tudo para ser um conto bom. Martins conseguiu manter minha atenção na história de um menino que pega a arma do pai para brincar com amigos. O final, entretanto, mais uma vez, deixou um anticlímax prejudicial. Gosto de finais em aberto, que deixam o leitor concluir a história. Nesse conto, porém, a condução merecia um desfecho mais adequado.
“O caso da borboleta” já é um conto fechadinho, agora sem tensão, pois é um texto mais poético: “A borboleta é um presente do tempo”. Giovani mostra aqui que tem o pendor de experimentar com a linguagem sem ser apenas no trabalho exagerado com as gírias. Um ponto positivo, mas nada ainda surpreendente.
Com “A história do Periquito e do Macaco”, voltam as gírias e os erros de concordância do narrador (“Tu tá ligado como eles é.”). A ideia, claro, é sempre ser o mais realista possível, porém é um recurso que cansa, torna a leitura truncada e, convenhamos, faz com que o leitor passe a escrever e falar errado também, visto que ele internaliza o erro depois que lê. Isso deixa de ser uma experimentação da linguagem para se tornar uma fórmula de escrita. O tema também é repetitivo, mais uma vez o sujeito fumando “bagulho”, o tráfico, o ódio contra a polícia invadindo o morro e blá, blá, blá.
E assim seguem as histórias que não se desenvolvem, coito interrompido, linguagem ora formal ora informal, pendendo mais para a informal: “Primeiro dia”, o jovem que finalmente entra em uma escola de gente grande, depois de repetir várias vezes de ano, e agora vai enfrentar uma espécie de ritual de iniciação que, pasmem, é invocar o espírito da “loura do banheiro”; “O rabisco” tem um pichador como protagonista; “A viagem” traz personagens de classe média, mas, claro, o narrador faz questão de dizer que fumam “baseados” e usam LSD e cocaína e depois são perseguidos por ladrões louros numa praia na virada do ano, ocorre uma briguinha na areia e é só; “O cego”, que pede esmola com um menino e ambos acabam o conto fumando e cheirando; “Estação Padre Miguel”, que inicia citando o crack e cujo enredo gira em torno da compra de maconha e de sua qualidade (“− Palhaçada esse beck.” [...] “─ Essa maconha tá muito palha, já fumamos vários e ainda tamo de cara. Essa erva só tá servindo mesmo pra fumar com pedra.”). É neste conto que há, a partir da fala dos personagens, uma explicação para tanta droga num livro só:

“─ Vocês só falam de droga, nunca vi.
 ─ Isso é porque o mundo tá drogado, irmão. Até parece que tu não sabe. Já te falei, vou falar de novo: uma semana sem drogas e o Rio de Janeiro para. Não tem médico, não tem motorista de ônibus, não tem advogado, não tem polícia, não tem gari, não tem nada. Vai ficar todo mundo surtando de abstinência. Cocaína, Rivotril, LSD, balinha, crack, maconha, Novalgina, não importa, mano. A droga é o combustível da cidade.
O Alan adorava falar isso, a gente adorava ouvir.
─ A droga e o medo ─  concluí.”

Um oásis no meio de tantos equívocos é o conto “O mistério da vila”, em que o sincretismo religioso na favela é muito bem abordado. Uma mulher de religião de matriz africana consegue salvar, através de uma oração, um filho de uma mulher testemunha de Jeová. Quando a “macumbeira” está doente, recebe a visita dos dois e o menino revela que rezou por ela numa igreja católica. Um belo conto.
Os dois últimos contos seguem o mesmo diapasão dos demais: em “Sextou” (sim, é esse ridículo título facebookeano mesmo), um entregador de folhetos vai comprar baseado e é pego pelos malditos policiais que o subornam, tirando dele seus últimos cem reais, mas pelo menos deixando-o com a erva que comprou e mais alguns reais para o ônibus. Já no derradeiro conto, “Travessia”, o narrador é em 3ª pessoa, porém colado no protagonista, que tem que levar para “desova” o corpo de um comprador da boca de fumo assassinado. A linguagem é mais uma vez repleta de gírias, de lugares-comuns do linguajar dos traficantes (“lugar de vacilão é na vala”) e as incorreções gramaticais. E, como não podia deixar de ser, o relato não dispensa muita erva: “as coisas mudaram depois que largou os cultos e passou a fumar maconha na rua”. O título do livro poderia ser “A fumaça na cabeça”.
Nas frases de famosos usadas como propaganda do livro, uma afirmação do Chico Buarque que é para ser de elogio ao livro: “Fiquei chapado”. Tenho que dizer que só chapado mesmo ou tomando muito sol na cabeça para alegar que o escritor é todo esse fenômeno que pintam. Foi um sacrifício chegar ao final do livro. Geovani Martins é um autor comum, desses que aparecem em qualquer canto quando se chuta uma moita. Se é o negócio é usar gíria e falar sobre a favela, os “rappers” ou os adeptos do “poetry slam”, uma variedade literária oral, fazem um trabalho muito melhor.

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