Minha resenha sobre "A tinta da melancolia", de Jean Starobinski
Na minha colaboração com o blog do Gustavo Nogy, no site do jornal Gazeta do Povo, escrevo sobre "A tinta da melancolia", de Jean Starobinski. Para ler este e minhas outras críticas por lá, você pode assinar e acessar todo o site ou apenas se cadastrar com direito de acesso a até 5 textos gratuitos:
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“Bom dia, tristeza”
Por Cassionei Niches Petry
Jean Starobinski, nascido em Genebra, na Suíça, em
1920, além de crítico literário e professor, é também médico. Curiosamente, inicia
A
tinta da melancolia – uma história cultural da tristeza (Companhia das
Letras, tradução de Rosa Freire d’Aguiar,564 páginas) abordando primeiro a cura,
em capítulo em que reproduz sua tese de doutorado em medicina. É como se dissesse
“calma, que esse mal pode ter um fim, vamos entrar nesse mundo sem medo”. E, para
usar de um lugar-comum, o autor nos conduz pela mão nessa viagem para conhecer
uma das mais misteriosas sensações que temos.
Starobinski vai buscar na arte os
melhores exemplos para discutir o tema. Poemas, romances, pinturas, esculturas
são alvos de análise na tentativa de entender a melancolia. Dando o tom dos
ensaios da obra, nas primeiras páginas temos a tristeza presente na obra de
Homero, ou seja, nos primórdios da literatura, mais precisamente no primeiro
grande épico da cultura ocidental, Ilíada,
em versos sobre o personagem Belerofonte:
“Objeto
de ódio para o deuses,
Ele
vagava só na planície de Aleia,
O
coração devorado de tristeza, evitando os vestígios dos homens.”
E é também Homero,
agora em Odisseia, que menciona pela
primeira vez a propriedade de um medicamento: “Mistura de ervas egípcias,
segredos das rainhas, o nepentes entorpece os sofrimentos e refreia as mordidas
da bile”.
Durante o trajeto nessa viagem,
Starobinski aborda as cartas de Hipócrates. O pai da medicina escreve que foi
chamado para curar a loucura do filósofo Demócrito. Antes de utilizar
medicamentos, decidiu conversar com o “louco”, mergulhado nos seus estudos.
Percebeu que ele estava em plena saúde mental: “Só o acusam de loucura porque
não o compreendem direito.”
É a essa ideia do intelectual ou
do artista incompreendido que se relaciona a melancolia. No “Problema XXX”,
Aristóteles diz que “todos os homens de exceção [filósofos, poetas, artistas]
são manifestamente melancólicos”. O título do livro, inspirado em um poema do
nobre francês Charles d’Orléans, lembra, além da bílis negra, também a “água
escura [que] se transforma em material de escrita”. Preencher o vazio interior é
simbolizado pela folha em branco que será manchada com as palavras do poeta, do
filósofo ou do romancista. Não por acaso, Machado de Assis usou a mesma
expressão através do narrador de Memórias
póstumas de Brás Cubas: “Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e
a tinta da melancolia (...)”. Infelizmente nosso maior escritor parece ser desconhecido
do crítico suíço.
Jean Starobinski dedica também um
longo capítulo a uma obra fundamental sobre o tema: A anatomia da melancolia, de Robert Burton, “livro-fonte, um
tesouro de linguagem para os escritores, e sobretudo um repertório de exemplos num
campo em que o exemplo é contagioso”. Interessante é a análise que faz do
frontispício da obra, com gravuras que trazem, por exemplo, desenhos de
remédios vomitivos ou o sinal astrológico de Saturno, “senhor da melancolia”.
Quanto à pintura, o destaque é a análise do
quadro “O retrato do dr. Gachet”, de Van Gogh, um dos tantos que trazem a
representação icônica do melancólico, assim como a gravura “Melancolia I”, de
Dürer: “o rosto levemente inclinado, o olhar baixo, a mão segurando a cabeça”.
De Chirico também é mencionado a partir de um quadro que se chama “Melanconia”,
em que o destaque é uma estátua que, como sói acontecer com as esculturas,
parece não olhar para ninguém. Para Starobinski, o “sujeito melancólico,
privado de futuro, voltado para o passado, devastado, sente a maior dificuldade
em receber e retribuir um olhar. Incapaz de encarar, tem a sensação de que o
mundo é cego para a sua miséria. Já se sente morto num mundo morto”.
O livro ainda aborda a relação da
ironia e da melancolia a partir do pensamento de Kierkegaard, analisa a loucura
de Dom Quixote provocada pela melancolia e, principalmente, realiza um estudo
amplo da poesia de Baudelaire, o poeta do spleen
(o tédio), o mal do século que vai influenciar os poetas românticos,
melancólicos por excelência.
Maurice Olender afirma, em uma
nota de apresentação da obra, que A tinta
da melancolia é um “romance enciclopédico”. Tenho que concordar com o
historiador belga. Apesar de eu ter levado mais de um ano para ler a obra, a
leitura foi prazerosa, e só demorei porque não queria me desprender dela, pois
me acompanhava em cima da escrivaninha a cada leitura de outros livros. Fechado
o volume, bate a melancolia de quem se separa de algo importante para a sua
vida.
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