Resenha sobre "Blumfeld, um solteirão de mais idade e outras histórias", de Franz Kafka
Escrevi, no blog do Gustavo Nogy, na Gazeta do Povo, sobre "Blumfeld, um solteirão de mais idade e outras histórias", de Franz Kafka (Civilização Brasileira), tradução de Marcelo Backes: http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/gustavo-nogy/2018/04/25/rezando-com-kafka/
Rezando com Kafka
por Cassionei Niches Petry
Jesus
Cristo e Franz Kafka. Sempre notei
semelhança no nome de ambos. Há, porém, outras similitudes. Tal qual o Nazareno,
o autor de A metamorfose teve
problemas com seu pai (“por que me abandonaste?”, perguntou Cristo crucificado
no Evangelho, “poderia supor que tu simplesmente me esmagarias sob os pés, a
ponto de não sobrar nada de mim”, escreveu o angustiado Kafka na Carta ao Pai). Ambos não casaram, nem
tiveram filhos e só alcançaram reconhecimento depois que morreram. Pode-se dizer
que essa valorização só foi possível porque um amigo os traiu: Judas, com o
beijo delator em troca de trinta de moedas de prata, e Max Brod, que não
queimou os escritos inéditos como havia pedido o escritor checo.
Eis
uma diferença. JC não deixou nada escrito. Já FK escreveu, e muito. Graças ao
apóstolo Max Brod, boa parte dessa obra está à nossa disposição.
Graças
também aos bons tradutores, podemos ler Kafka no Brasil. Um deles é Marcelo
Backes, que trouxe ao altar das livrarias, juntamente com a editora Civilização
Brasileira, o volume Blumfeld, um solteirão de mais idade e
outras histórias, que reúne parte considerável da produção contística
de Franz Kafka. Além de traduzir, escreve um brilhante (apesar de ser ofuscado
um pouco quando acrescenta um “golpista” forçado ao abordar o conto “O
timoneiro”) e elucidativo posfácio, em que dois capítulos se intitulam, não por
acaso, “a.K. – antes de Kafka” e “d.K. – depois de Kafka”.
O
conto que intitula a coletânea é o que mais condensa tudo que Kafka fez. Um
solteirão decide se terá ou não um cachorro como companhia. Enquanto isso,
percebe duas bolas quicando às suas costas. Para onde vai, elas vão atrás. Algo
incômodo e estranho, sem dúvida, mas que não espanta muito o nosso
protagonista. Quando consegue prendê-las num baú, dá a chave para o filho da
empregada, dizendo que lhe dará as bolas de presente. Enquanto isso, vai
trabalhar e aqui aparece todo a crítica ao trabalho burocrático que é peculiar
do autor. Nota-se também a presença de dois ajudantes de Blumfeld, daqueles que
mais atrapalham do que ajudam, como os auxiliares do agrimensor K., em O castelo, ou mesmo os dois responsáveis
por prender Joseph K. em O processo. Não
seriam as duas bolas as representações dessas figuras que por sua vez
representam o trabalho inútil da burocracia?
O
bestiário de Kafka é bem representado na coletânea. Do narrador canino e seus
“cãopanheiros” (escolha duvidosa do tradutor) em “Investigações de um cão”,
passando pelo Dr. Bucéfalo, que era o cavalo de Alexandre, o Grande e agora é
“O novo advogado”, até chegar aos ratos de “Josefine, a cantora ou O povo dos
camundongos”, em que, nas palavras de Günther Anders (e na tradução de Modesto
Carone, que é também o maior tradutor de Kafka no país), “é descrita a
prima-dona dos camundongos, religiosamente venerada e dona de um canto
lamentável, que infunde respeito e devoção absolutos”. Harold Bloom, em Abaixo as verdades sagradas, no entanto,
afirma que Josefine também é um corvo ou gralha, que é o que significa kafka em checo, assim como Graco, do conto “Graco, o caçador”, é gralha em latim.
Além
das bolinhas de Blumfeld, outro objeto causa estranhamento. Trata-se de “um
carretel de linha chato em forma de estrela”, que recebe o nome de Odradek no
conto “A preocupação do pai de família”. Num ensaio sobre o relato, Roberto
Schwarz escreve: “A graça de Odradek é desumana, e a vida humana é desgraçada.”
Os
mitos, por seu turno, são revisitados em “Prometeu”, “O silêncio das sereias” e
“Posídon”, contos curtos e enigmáticos. “O abutre” pode ser também uma
releitura do mito de Prometeu. É um conto curto, porém doloroso, que ecoa na
mente do leitor por muito tempo. Para Marcelo Backes, é uma história “terrível
para despedaçar o que ainda resta aparentemente intacto em nós”.
Infelizmente,
não estão no livro alguns dos meus contos preferidos de Kafka, como “A ponte”, “A
construção” e “Na colônia penal”, enquanto há contos que não me agradam muito,
principalmente os retirados do livro Contemplação,
mas que não deixem de ser um intervalo de leveza entre o peso das demais
histórias. Por outro lado, o onírico
“Um médico rural” e o angustiante “Um artista da fome”, narrativas consagradas,
merecem lugar na coletânea.
“Diante
de Kafka, estou prostrado”, escreveu Elias Canetti. Prostramo-nos todos diante
de sua obra, afinal, como lembra Marcelo Backes no posfácio, “num dos
fragmentos de seus Diários está escrito: ‘Escrever como forma de oração’, e ele
fez de sua arte sua reza”. Oremos, então.
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