A vida gira como a roda de uma bicicleta
A vida
gira, para, volta a girar, trava, recomeça, entorta se encontra um obstáculo
mais firme, fica suja, brilha no sol se bem limpa. A vida é uma roda de
bicicleta, sempre em busca do equilíbrio e que precisa aguentar um peso sobre
si. É sobre essa circularidade da vida o novo livro de Miguel Sanches Neto, A
bicicleta de carga e outros contos (Companhia das Letras, 132 páginas).
O peso
que a vida tem que aguentar para não se desequilibrar é outra vida sobre si.
Parafraseando a canção de Tom Jobim, é impossível ser infeliz sozinho.
No
primeiro conto, “Todas as mãos”, a menina que ganha um piano da mãe, apesar das
dificuldades financeiras, precisa deixar de lado o instrumento depois de adulta:
“Vieram os filhos, multiplicando as obrigações”. Já em “Amor em Madri”, o jovem
encontra um amor que, por sua vez, já havia encontrado o seu. Tal qual “Missa
do galo”, de Machado de Assis, há uma expectativa de que algo possa acontecer e
o narrador nos conduz com mão precisa até o desenlace.
O
erotismo é bem conduzido em duas narrativas em que o protagonista é obcecado
por sexo: “Pequenos aracnídeos” e “Banho de cachoeira” (dois contos que são um
só, na verdade). Sua colega de doutorado, bem casada com um professor e mãe de
dois filhos, o leva para a chácara da família e, talvez com a conivência do
marido, os dois mantém uma relação curta, porém intensa.
Para o
Sr. Nelson, a carga a carregar são os gringos que infestam seu hotel, mexem nos
seus jornais e tomam seu uísque, mas o que torna doloroso o conto que leva o
nome do personagem é a conversa final com o seu filho, quando ficamos sabendo o
real lugar dele. Em “Pintado para a guerra”, o protagonista é um escritor com
câncer terminal que se torna uma carga para a esposa, assim como o sucesso de
outro escritor o desequilibra, sendo uma das causas de seu bloqueio: “Levanta e
pega o volume que o atrapalha. Não escrevo porque ele está me vigiando. Põe o
livro de Valério no cesto de lixo da cozinha”.
“Todo
amor é impossível”, afirma um personagem apaixonado pela esposa de um dono de
uma grande empresa de televisão, ou melhor, pela imagem dela em um quadro, em
“Caminho para Paris”. Em “Cheiro de grama molhada”, um adolescente rouba
calcinhas da vizinha, uma mulher madura e, em princípio, inalcançável, em mais
um conto de alto erotismo.
“Senhoras
da noite” também trata do erotismo, mas me pareceu deslocado no livro, pois é o
único conto ambientado no século XIX, enquanto a maioria dos textos se passam
na atualidade ou poucas décadas atrás. É a única crítica que faço ao livro.
Aliás, em “A linguagem roubada”, um escritor famoso e publicitário (que também
tem câncer, como o escritor de outro conto) diz: “– Nosso dever é criticar. Um
escritor que não faça isso não passa de um publicitário”. (Ou um youtuber, acrescento eu.) É uma
narrativa que aborda de forma sarcástica o meio literário, mas ao mesmo tempo mostra
uma amizade sincera (difícil nesse meio) entre dois escritores.
“Mundo
móvel” é o melhor conto. Uma família, cujo sobrenome é Fracasso, tem como
destino auto imposto jamais sair da sua cidade. Um jovem tenta questionar isso
em diálogos com o pai, que repete frases sobre o tempo: “–Você não tira o tempo
do tempo”. “– O tempo não tem a parte de dentro”. “– O homem tenta entrar no
tempo”. Precisei bastante tempo para digerir essa narrativa.
O último
conto dá título à coletânea e, fazendo jus à roda que mencionei no início, se
volta de novo para a infância, e mais uma vez aparece aquela doença – dessa vez
da mãe do protagonista –, uma das maiores cargas que o ser humano tem que
carregar. A cena final em que o menino, na sua bicicleta de carga, anda com um
saco de arroz furado para aliviar o peso é emblemática.
A nova
obra de Miguel Sanches Neto é uma carga pesada e desequilibra o leitor.
Portanto, é boa literatura.
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