Sexo, Literatura e Rock’n’Roth




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Devido à morte de Philip Roth, muito se falou sobre suas obras consagradas, como Complexo de Portnoy ou A marca humana. Há, porém, alguns títulos da extensa bibliografia do autor que ainda merecem um novo olhar e são desconhecidos, pelo menos aqui no Brasil. Entre estes está O seio (The breast), de 1972. Já tivemos uma tradução ainda nos anos 70, porém está esgotada. Não a encontrei nem mesmo na Estante Virtual. Sequer uma imagem da capa está disponível. Contentei-me com uma versão em espanhol, no formato e-book, “El pecho”, traduzido por Jordi Fibla e editado pela Random House. É o primeiro livro do que se tornaria a chamada Trilogia de Kepesh, que tem continuação com O professor do desejo, de 1977, e termina em O animal agonizante, de 2001, estes editados aqui no Brasil pela Companhia das Letras.

O tema é inusitado. David Kepesh, professor de literatura, acaba se transformando num seio de 70 quilos, “uma glândula mamária sem nenhuma relação com nenhuma forma humana, como só poderia aparecer, alguém pode ter pensado, em um sonho ou em uma pintura de Dali.” (O leitor afeito ao cinema vai lembrar-se também do enorme seio que aparece em uma das cenas de “Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo, mas tinha medo de perguntar”, de Woody Allen, judeu como Roth.) Mantido vivo em um hospital, Kepesh não vê nada, mas consegue se comunicar e ficar a par da situação absurda.

Uma das situações que tem que enfrentar é o seu desejo sexual. Quando a enfermeira fica encarregada de limpá-lo, nota que se excita quando é tocado. Sua namorada, Claire, acaba satisfazendo seus desejos ao chupar seu mamilo, fazendo-o ejacular. A sexualidade é uma obsessão de Kepesh, e será desenvolvida nas outras obras da trilogia.

É nas reflexões sobre sua existência o ponto alto da história, principalmente quando começa a negar seu estado, argumentando que talvez esteja louco e que tudo não passa de ilusão sua, provocada pela literatura. “Os livros sobre os quais tenho dado aulas... eles me meteram essa ideia na cabeça. Penso em meu curso de literatura europeia. Ocupar-me de Gogol e Kafka um ano depois de outro, explicar O nariz e A metamorfose.” Seu psicanalista, Doutor Klinger, é a representação de seu lado racional, aquele que tenta fazê-lo aceitar a realidade e quem o adverte sobre os perigos da literatura e, por extensão, da imaginação: “Gogol, Kafka e companhia... você vai ter sérios problemas se seguir por este caminho.”

Esse ménage à trois entre O seio, O nariz e A metamorfose (poderíamos ainda adicionar As viagens de Gulliver, de Swift, nessa orgia) nos propõe uma das interpretações possíveis para a narrativa. O nariz do major Kovaliov que desaparece na novela de Gogol nos remete à perda de discernimento, pois o nariz simboliza a perspicácia, de acordo com o Dicionário de símbolos de Chevalier e Gheerbrant. Gregor Samsa, na famosa obra kafkiana, se transforma num inseto e perde a aceitação da família. As mudanças do corpo, portanto, representam perdas. E o que Kepesh perde ao virar um seio? Recorro mais uma vez ao dicionário de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant: “o seio tem relação com o princípio feminino, isto é, com a medida no sentido de limitação; ele só é medida pelo próprio fato dessa limitação. E isso, em oposição ao princípio masculino que ilimita – o sem-medida.” Kepesh perde, portanto, sua identidade masculina e sua liberdade, pelo menos provisoriamente. Perde suas duas paixões: a possibilidade de ler e de poder fazer sexo na forma convencional. O que não perde, no entanto, é seu desejo sexual.

Claudia Roth Pierpont, em Roth libertado: o escritor e seus livros (Companhia das Letras, tradução de Carlos Afonso Malferrari), escreve que “há uma certa pungência na raiva que Kepesh sente de Gogol e Kafka por terem lhe colocado nessas circunstâncias”. Como uma espécie de Quixote, David tem um acesso de loucura de tanto ler histórias do absurdo e vê-se transformado naquilo que lê. Como uma de suas obsessões eram os seios, ele se transforma no seu objeto de desejo. “Talvez haja uma advertência para tomarmos cuidado com o que desejamos”, escreve Pierpont.

O desejo (pelos seios, pelo sexo, pela Literatura) perpassa a trilogia de Kepesh e está no título do segundo romance.

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As leituras e releituras da obra de Philip Roth me apresentam e reapresentam um escritor espetacular, que vai do engraçado ao trágico, do religioso ao antirreligioso, do casto ao erótico. Apenas uma coisa me parece presente em todos os livros, ou que pelos menos os tangencia: a condição judaica. De resto, a temática é ampla e variada, com algumas obsessões permanentes.

Depois de O seio, enveredei pela segunda obra que tem David Kepesh como protagonista. O professor do desejo (Companhia das Letras, 256 páginas, tradução de Jorio Dauster), publicado originalmente em 1977, conta a infância, adolescência e início da idade adulta (anos 40 e 50) de David, num momento um pouco anterior ao enredo de O seio. Aqui ele é o narrador e relata momentos com sua família, que administrava um hotel onde trabalhava um mágico e imitador que admirava; revive suas aventuras eróticas na Europa com duas suecas; menciona a graduação em literatura comparada que cursou; relembra a conflituosa relação com a primeira mulher, Helen, que exagerava nas drogas e na bebida; comenta sobre as suas primeiras aulas como professor na universidade; lembra as consultas com o psicanalista Klinger, que também aparece em O seio, assim como seu mentor intelectual Arthur Schonbrunn aparece nas duas obras; fala da amizade com o poeta Baumgarten, sempre “ébrio de tantas bocetas e letras de forma!”; faz referências à Kafka e outros escritores; e recorda a segunda mulher, Claire, com quem ainda estaria namorando em O seio. Os fatos se desenrolam numa agilidade narrativa que simboliza muito bem as ansiedades de Kepesh. “Assim, meu mundo interpõe seus argumentos e obstáculos entre as ânsias e os incontáveis objetos do desejo.” Tudo com muito sexo e literatura, não necessariamente nessa ordem. “Um libertino entre os doutos, um douto entre os libertinos” era um expressão que o descrevia, segundo ele próprio.

Uma passagem interessante acontece quando ele faz uma visita à Praga para conhecer os lugares por onde andou Kafka. Pierpont escreve em Roth libertado: “o professor que deu aulas sobre Kafka com uma convicção talvez excessiva vai visitar a cena do crime original”. Conversando com um guia, Kepesh diz: “Às vezes me pergunto se O Castelo não está realmente ligado ao bloqueio erótico de Kafka – um livro que se relaciona em todos os níveis com a incapacidade de se atingir o clímax.” O narrador-personagem também conta um engraçadíssimo sonho com uma velha prostituta que teria prestado serviços sexuais ao autor de A metamorfose.

É Tchékhov, no entanto, a chave interpretativa do romance. Em vários momentos, Kepesh relaciona algo que aconteceu com ele ou as pessoas que o rodeiam a algum texto do contista russo: “observo como Tchékhov, de forma clara e simples, embora não tão impiedosa quanto Flaubert, revela as humilhações e os fracassos — pior ainda, o poder destrutivo — daqueles que procuram escapar da concha de restrições e convenções, do enfado pervasivo e do desespero sufocante, das situações conjugais dolorosas e da falsidade social endêmica, rumo ao que imaginam ser uma vida vibrante e desejável.”

É o retrato dessa vida e de outra vida de Kepesh.

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Mencionei uma outra vida de Kepesh porque em O animal agonizante (Companhia das Letras, 128 páginas, tradução de Paulo Henriques Britto), de 2001, algumas datas citadas não fecham com as narrativas anteriores. David aqui está bem mais velho, perto dos setenta anos, solteiro e ainda conquistador, famoso como crítico cultural na imprensa e professor adorado. Até aí, tudo ok. No entanto, aparece seu filho de 42 anos, Kenny, que teria nascido em 1958, já que o professor conta sua história no ano 2000. Conta também que casou em 1956, portanto com 26 anos, pois nasceu em 1930. No entanto, em O seio ele tem 38 anos e o enredo de O professor do desejo vai até quando ele tem mais de 30 anos e ele não é pai nesses romances. Sua mãe morre na segunda obra sobre Kepesh. Em O animal agonizante, entretanto, é mencionado que ela acompanha o crescimento do neto. Ora, acredito que não houve um erro de cronologia de parte do Roth (e não encontrei nenhuma referência sobre o assunto), mas sim algo parecido com O avesso da vida, em que os personagens vivem existências diferentes, assim como acontece no romance 4321, de Paul Auster.

Nessa derradeira obra da trilogia, Kepesh conta a um interlocutor (ou interlocutora) sobre um relacionamento de oito anos antes, quando tinha 62 anos. Sempre no final do semestre, para se despedir dos alunos do curso livre de Crítica Prática, promovia uma festa em sua casa, no fundo com o intuito de “pegar” alguma aluna (bem mais nova), já que seu “código de ética” (na verdade o medo de denúncias de assédio) não o permitia fazê-lo durante o decorrer do curso. Vale destacar que David tornou-se uma quase celebridade em Nova Iorque e, por isso, suas aulas são concorridas, ainda mais por mulheres: “Muitos dos alunos são do sexo feminino. Por dois motivos: porque é um tema com uma combinação atraente de glamour intelectual e glamour jornalístico, e porque elas me conhecem de me ouvirem fazendo resenhas de livros na rádio educativa, ou então de me verem no canal 13 falando sobre cultura. No início, eu não me dava conta de que aparecer na televisão por dez minutos uma vez por semana podia impressionar tanto aquelas alunas. Mas elas sentem uma atração irresistível pela celebridade, mesmo que seja uma celebridade pífia como a minha.” A arte (música, pintura e poesia) se torna um motivo para atrair as mulheres e ele aproveita a sua vasta biblioteca e o fato de tocar piano para as conquistas.

Em uma das festas acabou conhecendo Consuela Castillo (“Os seios mais magníficos que jamais vi”), descendente de cubanos, jovem de 24 anos, por quem se apaixonou. Viveram o relacionamento durante algum tempo, mas depois se separaram. Enquanto isso, Kepesh reflete sobre a velhice (boa parte dos últimos livros de Roth trazem esse tema), os outros relacionamentos sexuais, a convivência difícil com o filho e aborda a questão do que hoje se chama “empoderamento” da mulher e a liberação sexual.

Consuela retorna anos depois para lhe revelar algo importante e é aí que o título do romance, inspirado em poema de Yeats citado na obra, se justifica. A tradução do título aliás, no meu ponto de vista, seria melhor se fosse a mesma da edição em espanhol, “animal moribundo”. Pedro Gonzaga, em artigo neste mesmo Estado da Arte, propôs “animal morrente”. Apesar da velhice provocar algumas modificações e limitações relevantes no seu corpo, não é David que está agonizando, como pensamos num primeiro momento, mas sim Consuela, que tem câncer justamente em um dos seios, objetos de desejo de Kepesh, como se fosse o fim de suas obsessões. A perspectiva de que ela perca a mama ou morra o deixa angustiado e por isso decide ficar do lado dela nesse momento doloroso. É quando aparece pela primeira vez, mas só no final, a voz do interlocutor, que até o momento apenas o ouvia e agora o aconselha a não fazer isso: “Pensa bem. Pensa. Porque se você for, pra você é o fim.”

A narrativa, mais lenta e curta do que O professor do desejo, revela um personagem que, apesar de mais calmo, acaba parecendo em muitos momentos um vovô como Mick Jaegger, pulando no palco num show de Rock e pegando mulheres mais novas. Kepesh é um personagem Rock and Roll de um dos escritores mais Rock and Roll da Literatura.


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