A NARRATIVA METAFICCIONAL DE ENRIQUE VILA-MATAS EM “EXPLORADORES DO ABISMO”
Ver em tudo literatura. O escritor
espanhol Enrique Vila-Matas diagnosticou essa obsessão como o mal de Montano em
um romance com título homônimo, publicado em 2002. Nessa e em outras
narrativas, o autor estabelece um projeto metaficcional, em que a literatura é
sempre o tema principal e, por consequência, o “eu” que vê o mundo sob o prisma
da ficção também se torna tema, tornando-se a narrativa autoficcional.
“Metaficção é a ficção que versa sobre
si mesma: romances e contos que chamam a atenção para o status ficcional e o
método usado em sua escrita”, conceitua David Lodge em A arte da ficção.
Salienta, ainda, que este tipo de narrativa é contemporaneamente utilizado por
escritores que “se sentem sufocados por seus antecedentes literários, oprimidos
pelo medo de que tudo o que tinham a dizer já tenha sido dito”. Lodge, porém,
limita sua preocupação a tão-somente às formas de se estruturar um romance, ou
seja, às escolhas que o escritor faz para conduzir a criação literária, apesar
de citar Borges e Calvino como aqueles que colocam a metaficção como centro das
narrativas. O problema vai além, pois a metaficção não é apenas um recurso
literário ou um jogo fechado para leitores ideais, como veremos mais adiante.
Gustavo Bernardo busca em outras fontes
artísticas os conceitos que norteiam seu estudo que resultou em O livro
da metaficção. Na primeira página, uma fotografia de Chema Madoz, mostrando
uma escada encostada sobre um espelho. A artista e o teórico, dessa forma, nos
convidam para subir e depois entrar no espelho a partir do reflexo da escada:
“o espelho da ficção não nos devolve a realidade tal e qual: antes inverte e
depois nos leva para outro lugar”. “Meta” vem do grego e quer dizer “além de”.
Nesse sentido, quando entramos numa obra de arte, estamos indo para outro
espaço, cujas leis são diferentes da nossa realidade, embora baseadas nela. A
realidade vira ficção e a ficção vira a realidade. Nesse espelhamento,
metaficção seria “um fenômeno estético autorreferente através do qual a ficção
duplica-se por dentro, falando de si mesma ou contendo a si mesma”. Bernardo
ainda acrescenta que as melhores obras trazem esse fenômeno: a literatura de
Machado de Assis, o cinema de Hitchcock e a pintura de Magritte, por exemplo.
Olhar para o espelho lembra o refletir,
o olhar para dentro de si mesmo. Se o artista vive rodeado por tudo que se
refere a sua arte, logicamente, em algum momento, ela vai aparecer como tema do
seu fazer artístico. Um escritor que apenas pratica a literatura em muitos
momentos do seu dia a dia fatalmente vai falar sobre ela. Já um escritor que
vive a literatura sempre vai falar sobre ela. É o caso de Enrique Vila-Matas.
No seu primeiro romance – pelo menos
aquele que o autor considera como estreia, pois já havia publicado outro
–, La asesina ilustrada, lançado em 1977, aparece a primeira
experiência de Vila-Matas em voltar a literatura sobre si mesma. No enredo, um
manuscrito de um romance causa a morte de quem o lê. A história se desdobra a
partir de cartas, notas escritas por um crítico literário e a biografia de um
escritor fictício. Vê-se nessa obra a gênese da metaficção vila-matiana.
As outras obras foram pouco a pouco
desenvolvendo seu projeto metaliterário. Em Impostura, de
1984, um ladrão de túmulos se passa por um escritor desconhecido. Historia
abreviada de la literatura portátil, de 1985, conta a história de uma
sociedade secreta formada por membros da vanguarda europeia na década de 20,
não apenas escritores, como também pintores, cineastas e atores. E em Extraña
forma de vida, de 1997, um escritor elabora uma conferência sobre espionagem
e literatura.
Em 2000, com Bartleby y
compañia, o projeto metaliterário de Vila-Matas chega ao seu ponto
alto. Inaugurando uma trilogia que o editor Jorge Herralde batizou de Catedral
Metaliterária, a obra aborda, numa narrativa em forma de notas de rodapé, a
vida de escritores que deixaram de escrever. A trilogia continua com o já
citado El mal de Montano, cujo protagonista sofre de uma
enfermidade relacionada a uma obsessão pela literatura, e termina com Doctor
Pasavento, de 2005, cujo tema são os escritores que desaparecem. Em
2010, o romance Dublinesca continua a utilizar a metaficção,
desta vez dando voz a um editor que vai a Dublin celebrar o funeral da
literatura. Entre a trilogia, Vila-Matas escreveu, em 2003, París no se
acaba nunca, livro autoficcional, inspirado no início da própria carreira
como escritor, quando tentava imitar seu ídolo literário, Ernest Hemingway,
autor de Paris era uma festa.
Entre Doctor Pasavento e Dublinesca, Vila-Matas
publicou, em 2007, o volume de contos Exploradores do abismo, cuja
edição brasileira foi lançada pela extinta Cosac Naify, com tradução de Josely
Vianna Baptista. Em alguns relatos, estão presentes as temáticas recorrentes da
obra vila-matiana, principalmente no que se refere ao metaliterário: reflexões
sobre o ato de escrever, as citações de outros escritores, a relação literatura
e realidade, a diluição do autor e a autoficção. A maioria dos contos, no
entanto, trata de questões do cotidiano, mas seria um jogo, como explica o
próprio Vila-Matas em uma entrevista: “No livro há um jogo perverso em que
simulo haver prescindido da metaliteratura, ou simplesmente da literatura mais
estrita.” O autor finge passar a escrever sobre fatos banais, mas passa a
explicar o porquê desse novo processo.
O volume abre com o conto “Café
Kubista”, que serve como uma espécie de prólogo da obra. Narrado em 1ª pessoa,
relata as reflexões de um escritor que está na cidade de Praga, onde viveu
Franz Kafka, autor de um pequeno relato que inspirou o título do livro que
acabara de escrever. Ora, este livro fala sobre personagens que são
exploradores do abismo, abismo esse contendo o vazio que o escritor tenta
preencher através da escrita: “Penso que um livro nasce de uma insatisfação,
nasce de um vazio, cujos perímetros vão revelando-se no transcurso e no final
do trabalho.” Essa insatisfação consiste em usar a própria literatura como tema
e o autor busca voltar a uma ingenuidade criativa do início da carreira.
O conto seguinte, “A modéstia” – depois
da reprodução de um pequeno texto atribuído a Kafka –, trata das questões do
cotidiano, com personagens simples, mostrando que realmente o autor estava
voltando a escrever textos que deixam de lado a metaliteratura, desejo que é
expresso através do próximo conto, que é semelhante ao primeiro, “A gota gorda”,
um relato ou ensaio disfarçado. O narrador mais uma vez reflete sobre os contos
que voltou a escrever depois de anos produzindo apenas romances. Conta que
precisa se readaptar a uma narrativa mais rápida, mas não era isso que o
incomodava, e sim “o duro esforço de contar histórias de pessoas normais e ter
por sua vez que reprimir minha tendência a divertir-me com textos metaliterários”.
Como se percebe, ao dizer que está se
afastando de uma literatura que se volta sobre si mesma, o narrador – ou seria
o próprio Vila-Matas – continua fazendo metaliteratura.
Os contos subsequentes vão seguindo a
linha realista proposta em “A gota gorda”: “Menino”, “Os autistas são assim”,
“Iluminado”, etc. Nos relatos finais, no entanto, a falsa intenção inicial dá
lugar à metaliteratura.
O conto longo ou novela “Porque ela não
me pediu isso”, segundo o próprio Vila-Matas, é imprescindível para entender
seu universo ficcional: “penso que serve para responder a quem me pergunta de
que tratam meus livros. Porque é possível que para entrar na minha obra, o
melhor primeiro passo é ler esse conto.” Na primeira parte, intitulada “A
viagem de Rita Malú”, temos a história da personagem que já apareceu em outras
obras de Vila-Matas e seria o alter ego feminino do escritor. Rita Malú é
obcecada pela artista Sophie Calle e tenta imitá-la, expondo obras com o mesmo
estilo, e depois enfrenta uma aventura em busca de um escritor que
desapareceu. “O escritor havia publicado não havia muito um romance, o
quinto de sua carreira. Nele havia encenado seu próprio desaparecimento.” As
referências aos romances Doctor Pasavento e París no
se acaba nunca são claras.
Na segunda parte, “Não jogues comigo”,
é revelado que esse relato foi escrito pelo narrador, o próprio Vila-Matas, e
teria sido encomendado por Sophie Calle para que ela o vivenciasse letra por
letra, transformasse a literatura numa vivência pessoal. “O que Sophie
queria propor era que eu escrevesse uma história, qualquer história. Que
criasse uma personagem que atuaria – ao largo de no máximo um ano – de acordo
com o que eu escrevesse.” É um conto dentro de outro conto, o que nos
remete às bonecas russas chamadas babushkas. No entanto, na
última parte, ficamos sabendo que o autor escreveu a história, na verdade, sem
ela ter solicitado a ele, mas sim a outro escritor, Paul Auster, que não
atendeu ao pedido. Nesse jogo literário, em que o leitor se vê também
envolvido, realidade e ficção se juntam. São discutidos os limites da ficção
através da própria ficção, sendo que essa ficção é baseada no fato real de que
Sophie Calle, artista que existe mesmo, teria pedido a Paul Auster, outro
escritor real e amigo de Vila-Matas, que escrevesse para ela, segundo uma
entrevista concedida pelo autor ao jornal El País.
O último conto serve de epílogo para o
livro, assim como o primeiro servia de prólogo. “A glória
solitária” também fala sobre a desaparição e são citados, como de praxe, vários
artistas caros a Vila-Matas, como Glenn Gould e Robert Walser. Um
conto-ensaístico que propõe que a solidão é importante para o artista, na
medida em que só assim toma contato com a questão existencial: “Esconder-se era
o destino de todos esses amantes da glória solitária, todos esses artistas que
acabam necessitando de isolamento radical porque sabiam que isso lhes
aproximava mais do absurdo da existência e à solidão que cedo ou tarde haveria
de chegar na hora da morte.”
Já escreveram que Vila-Matas é um
escritor somente para escritores. Sua obra é metaliterária ao extremo, o que
afasta muitos leitores e críticos os quais defendem outros temas da nossa vida
mais relevantes para serem discutidos pela literatura. Para Tom Wolfe, por
exemplo, a metaficção reflete a decadência e o narcisismo da cultura letrada:
“Mais uma história sobre um escritor escrevendo uma história! Mais um regressus
ad infinitum!” No entanto, como o narrador de El mal de Montano escreve,
“entre a vida e os livros, fico com estes, que me ajudam a entendê-la. A
literatura tem me permitido sempre compreender a vida. Mas precisamente por
isso me deixa fora dela. Digo sinceramente: está bem assim”.
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