Textos cortantes
Minha admiração por Elias Canetti começou na universidade. Durante
a minha graduação, percorria as estantes da biblioteca sem um planejamento
prévio. Usei muito pouco as antigas fichas dos livros para localizar exemplares.
Não por acaso, volumes grossos me chamavam a atenção. Foi assim que cheguei ao
romance “Auto da fé”, cujo protagonista, carregando na cabeça sua biblioteca,
inspirou o nome dessa coluna, como escrevi na semana passada.
Além dessa obra-prima, Canetti escreveu “Massa e poder”,
longo ensaio sobre o comportamento massificado, que lhe valeu o Nobel de
Literatura. Nascido em 1905, na Bulgária, quando morreu, em 1994, Elias Canetti
deixou muitos textos inéditos, que aos poucos vão sendo publicados. Um das
obras póstumas é “Sobre os escritores” (José Olympio, 208 páginas, tradução de
Kristina Michahelles) que, além de ensaios curtos, notas de leitura e
conferências, traz também um gênero em que Canetti se tornou um mestre: o
aforismo.
Segundo o
dicionário Houaiss, aforismo é um “texto curto e
sucinto, fundamento de um estilo fragmentário e assistemático na escrita
filosófica, geralmente relacionado a uma reflexão de natureza prática ou
moral”. Carlos Edmundo de Ory, poeta espanhol, registra outras definições criadas
por alguns autores: “Nietzsche os chama: sentenças e dardos /
Novalis os chama: pólen / Baudelaire os chama: foguetes / Joubert: pensamentos, Cioran: pensamentos
estrangulados, e Andréi Siniaski: pensamentos repentinos /
Rozanov: folhas caídas e René Char: folhas de Hypnos”.
Humberto Gessinger, o eterno letrista dos Engenheiros do Hawaii, escreveu que
“aforismos são o band-aid do pensamento: só servem para cortes
superficiais.” Já o crítico literário Marcelo Backes propõe o termo estilhaços
e acrescenta: “O aforismo é antissistemático, de ascendência espontânea e
fundado num arremate sentencioso”.
Os textos de “Sobre os escritores” expressam as opiniões
sobre autores lidos e relidos por Canetti, num amálgama de elogios e críticas
contundentes, como essa: “Há em todas as afirmativas de Sartre aquela mesma
falta de cores, nada brilha, nada respira, nada vive”. Como afirma Peter von
Matt, organizador deste livro, “sua devoção era devoração, seu desprezo, um
vômito”.
O único senão do livro fica por conta da escolha da tradutora,
que optou pela tradução de “poeta” para a palavra “dichter” na maioria dos
textos e por “escritores” para o título, causando certa confusão na leitura, pois
Canetti usa o termo falando de escritores de uma forma geral. Fica estranho,
por exemplo, para os leitores de língua portuguesa, esse aforismo: “O poeta é aquele que inventa personagens
que ninguém lhe crê mas que ninguém esquece.” Afinal, personagens são elementos
da narrativa e não da poesia.
Passando por cima
disso, o leitor encontra inquietantes afirmativas como esta: “Um escritor que
não tem uma ferida constantemente aberta, para mim, não é um escritor. Ele pode
preferir escondê-la, se seu orgulho não permitir compaixão, mas precisa tê-la.”
Ou essa, sobrando para o crítico literário, sendo que Canetti assume esse papel
no livro: “O crítico como ponte mnemônica: todos o entendem, mas ele não
entende nada.”
E para fechar, a
importância das palavras na vida do escritor: “Melhor ainda seria se pudesses
viver apenas de palavras e tampouco precisasses comer.”
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