Coluna no jornal Arauto deste final de semana


Era uma casa nada engraçada

Conheci Shirley Jackson (1916-1965) pelo conto “A loteria”, indicação de Stephen King em Dança macabra, em que aponta a autora como a exceção entre os escritores de terror por não sofrer restrições da crítica.

Sempre vivemos no castelo, de 1962 (Suma/Companhia das Letras), tem como narradora uma jovem de 18 anos, Mary Katherine, ou simplesmente Marricat, caçula da família Blackwood, vivendo com a irmã, Constance, e o Tio Julian. Os três foram os únicos sobreviventes de um envenenamento que matou, 6 anos antes, pai, mãe, irmão e tia das jovens, o que resultou no julgamento da irmã mais velha. Apesar de inocentada e o verdadeiro culpado não ter sido descoberto, a população da cidade passa a odiá-los, e decidem viver reclusos no casarão, palco dos acontecimentos, recebendo a visita de poucos amigos.

Merricat sai regularmente para as compras, porém é sempre hostilizada por todos. Constance, por sua vez, jamais consegue sair, vítima de agorafobia, e a irmã menor não faz nenhuma questão de ajudá-la a superar o problema. Já o tio vive numa cadeira de rodas e tem alucinações, consequência, ao que parece, de ter escapado do envenenamento. O arsênico fora colocado no açúcar em uma das refeições familiares e ele era comedido no seu uso. A irmã mais velha jamais ingeria açúcar (um dos motivos de sua acusação), enquanto a caçula havia ficado de castigo no quarto sem poder comer.

Segundo o Dicionário de Símbolos de Chevalier e Gheerbrant, a casa representa, como símbolo feminino, refúgio, proteção. Era o que Constance e Merricat queriam. Os planos, no entanto, começam a ruir quando chega Charles, um primo, e Constance permite que ele more com elas: “... era o primeiro que entrava, e Constance o deixou entrar.” Quando a mulher toma esta atitude, de certa forma, tem seu corpo invadido, o que pode ser um erro grave. No romance, Ópera dos mortos, do mineiro Autran Dourado, a protagonista, Rosalina, deixa Juca Passarinho entrar no casarão para trabalhar. Tudo se desestrutura, sua vida vira ruína, se desmorona, como as voçorocas que rodeia a cidade.

Vemos durante o romance de Jackson vestígios de uma narrativa de terror, como a presença do gato preto Jonas, que pertence a narradora, que por sua vez inventa magias para proteger a casa e sua irmã (“Que tipo de casa é esta?”, pergunta Charles depois de ver uma corrente de relógio em uma árvore). Há outros elementos que prefiro não revelar, para não estragar as surpresas do leitor, mas posso dizer que o terror psicológico predomina, numa linguagem aparentemente juvenil da protagonista, que se mostra, porém, dissimulada, escamoteando informações e nos fazendo duvidar dos acontecimentos. A pergunta que fica é se tudo aconteceu realmente, inclusive a crueldade da população, ou não passou de fruto da imaginação da jovem, que volta e meia menciona um mundo paralelo ou imaginário que chama de Lua: “As coisas na Lua era muito brilhantes, de cores raras; minha casa seria azul”.

Joyce Carol Oates coloca Merricat no rol de “crianças e adolescentes precoces da literatura americana de meados do século XX”, como Scout de O sol é para todos, de Harper Lee, e Holden Caulfield, de O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger. É uma grande personagem, que fica na mente do leitor.

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