O grande romance branco


Paro diante da página em branco da tela do computador. O cursor pisca, esperando que eu preencha o vazio com letras, palavras, frases, forme um texto que, é o que espero, seja lido por alguém. A página em branco é a Moby Dick que enfrento todos os dias, seja para elaborar crônicas e críticas literárias, seja para compor uma ficção, conto ou romance, nesse enorme oceano que escolhi singrar. Vejo-me como o Capitão Ahab que, depois de ser quase destroçado pela grande baleia branca que arrancou sua perna, tenta capturá-la, traçando linhas no mar. Ela escapa, mas persegui-la é uma obsessão de toda uma vida.

A leitura de “Moby Dick ou A baleia”, do norte-americano Herman Melville (a edição mais recente, e primorosa, é da Editora 34, 648 páginas, tradução de Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza), publicado originalmente em 1851, também foi uma obsessão que persegui na minha trajetória de caçador de livros. A primeira caça foi modesta, peixe pequeno. Uma adaptação lida na escola, volume magrinho, que mesmo assim me deixou fascinado. Anos depois, visualizei a versão integral, esse sim um enorme cachalote, cuja “corcova como uma colina de neve” despontava no mar de livros da biblioteca da universidade onde estudava. Joguei o arpão, penetrei em suas páginas, mas sua força descomunal a fez escapar de mim. Não era a hora ainda, não compreendi sua complexidade, não suportei as extensas descrições enciclopédicas sobre tipos de baleias. No entanto, o romance me deixou uma primeira ferida, cuja cicatriz não me deixava esquecer de que deveria voltar à caça.

Muitos anos depois, a baleia despontou em outro mar, bem menor: a minha biblioteca. Desta vez, com muito esforço, cravei nela o arpão e durante dias e dias fui arrastado pela sua força. Quem nos ajuda a segurar a baleia é Ishmael, o narrador, o jovem marinheiro que, a partir de muitas reflexões filosóficas, mitológicas e religiosas, acompanha fascinado a saga do Capitão Ahab e nos apresenta uma galeria de personagens inesquecíveis, como o exótico Queequeg, todos tripulando o “Pequod”, o navio que é uma representação desse nosso caótico mundo. Fui, porém, até o final. Exausto, tive que soltá-la. Aprendi que não se pode domá-la. Novas caçadas seriam necessárias. Há, no entanto, toda uma vida para isso.

São assim os grandes livros. São enormes baleias que precisam de liberdade. E o leitor? “E o que é você, leitor, senão peixe solto e também peixe preso?”, escreve Ishmael. O leitor é livre para ler o que quiser. Quando começa, porém, fica preso na leitura, arrastado pelos mares desconhecidos.

Há muitas interpretações para “Moby Dick”. Otto Maria Carpeaux, em sua monumental “História da literatura ocidental”, lembra a leitura psicanalítica de que a baleia “seria o monstro, surgindo do subconsciente de um puritano”, a naturalista, “um manual da pesca das baleias”, mas também a realista, a “epopeia dos esforços inúteis da humanidade contra as forças da Natureza (...), a realidade objetiva das forças extra-humanas do mar, do Destino como peso material”. Para Albert Camus, o romance é “um dos mitos mais perturbadores que já se imaginou sobre o combate do homem contra o mal”. Para alguns leitores, pode ser apenas um romance de aventuras. Para mim, é a representação do escritor diante da hercúlea tarefa de tentar escrever uma grande obra ou a metáfora do leitor tentando entender essa obra. Enfrente esse romance, caro leitor, e faça as suas intepretações. Ou simplesmente leia.


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