"Velhos", de Alê Motta


Velhos

Os velhos são a parte da população mais visada durante à pandemia. Por um lado, queremos protegê-los, por serem os mais frágeis, os isolamos e deixamos de visitá-los, tentando salvar suas vidas. Por outro lado, se a coisa piora, é o idoso o escolhido para morrer e deixar os leitos nos hospitais para os jovens, supostamente com mais chance de cura. Questões éticas prementes nos dias que correm.

Antes ainda do novo coronavírus, a escritora fluminense Alê Motta havia concluído seu mais recente livro de contos, intitulado “Velhos” (Editora Reformatório, 136 páginas), por isso teve o lançamento prejudicado, assim como vários outros escritores estão na mesma situação. Sua obra, no entanto, está disponível, e se a doença, por suposto, não aparece nas histórias, outras tantas enfermidades, manias, hábitos, teimosias e idiossincrasias senis percorrem o pequeno volume, composto por pequenos contos, mas conformando um grande livro.

Na primeira obra, “Interrompidos”, Alê Motta se notabilizou pelo miniconto (o escritor Itamar Vieira Júnior afirma no texto de orelha de “Velhos” que denominar de microcontos os textos seria uma forma “reduzir o projeto literário da autora”, do que discordo), com uma precisão cirúrgica e notável habilidade do ourives com um cinzel, para usar dois chavões que explicam melhor sua capacidade artística. Quando escrevi sobre o livro, me equivoquei ao esperar que a escritora não se fixasse apenas nos contos minimalistas e nos desse mais do que isso. Pois ela manteve essa veia e alcançou outro patamar estético, já que não estamos diante de exercícios como os contos do primeiro livro.

Desta vez ela também abdicou das fotos que ilustravam o volume interior. A palavra, portanto, sem precisar de apoio. E é com palavras que ela povoa suas histórias de velhos que deixam o seu legado (“a maldade da minha família, que antes era só do velho, agora está em todos nós); que sofrem, além do preconceito contra os velhos, também o racial, no conto “Desculpas”; que são atropelados nas vias públicas, como no conto “Notícias”, que me arrancou lágrimas, pois meu pai, idoso, morreu atropelado há pouco mais de três anos; que sofrem com problema de memória (“Esqueci de tomar banho algumas vezes, no mês passado. Ou talvez não tenha esquecido. Não posso afirmar.”); que são otimistas, apesar dos pesares, como o personagem do conto “Solidão”; ou pessimistas (“tem dia que é inteiro de azar”).

Muitos são velhinhos perversos, tal qual o personagem do conto “Visitas”, que mata o sobrinho. Outros têm desejos suicidas, como o cadeirante do conto “Decisões”. Alguns se envolvem em situações cômicas que vão parar em vídeos na internet, no conto “Lucros”. Já outros se dão bem conhecendo novos namorados (“aprendi com minha netinha que o Agripino é meu crush”). A idade, porém, cobra seu preço (“Tenho artrose, asma, sinusite. Acordo e sinto dor até a hora de dormir. E durmo mal. Muito mal.”).

A Literatura é farta de bons e maus velhinhos. Podemos nos lembrar de alguns, como o valente pescador Santiago, de “O velho e o mar”, de Ernest Hemingway, do avarento Ebenezer Scrooge, de “O conto de Natal”, de Charles Dickens, e da matriarca D. Anita, do conto “Feliz Aniversário”, de Clarice Lispector, uma narrativa perturbadora, em que a relação superficial dos descendentes com a responsável por suas vidas mostra nossa desumanidade mascarada. Alê Motta, com sua obra, também nos faz perceber o quanto devemos evoluir como seres humanos, cuidando dos nossos velhos.


Comentários

Mensagens populares