Ensaio de Mauro Klafke sobre “Relatos póstumos de um suicida”
Mauro Klafke é autor do romance “A guardiã do fogo”, sobre
o qual escrevi na minha coluna no jornal recentemente, e outros livros de poesia
e contos. É uma das inspirações para o meu mestre imaginário, o Júlio Nogueira, pela idade e os conselhos, um pai literário. Escreveu este ensaio a partir da
leitura do meu último romance, “Relatos póstumos de um suicida”, e me enviou
por e-mail, ele que não muito afeito à internet e muito menos tem redes
sociais. Gentilmente permitiu que eu publicasse o texto no blog.
Nestes tempos
estranhos, mesmo antes da pandemia, a realidade do ir e vir (mesmo sem se saber
para onde) foi suspensa. O tempo é interrompido e só vai ser retomado adiante,
ninguém sabe quando, como e por quem, se todos, quantos, quem sim, quem não. O
contexto em que se vive agora se tornou essencialmente espacial, bem mais, mais
do que temporal. O espaço se tornou danoso, prisão, restritivo. Se o território
pessoal em alguns casos se reveste de características de cárcere, só em poucos
momentos pode ser “heimat” (pátria ancestral, paraíso, idílio, reino
encantado...), no mais é espaço nostálgico (barzinho, motel, livraria, igreja),
até a casa e o pátio ou o apartamento (constrangem pelos dias que se tem de
passar aí, em isolamento).
O romance (ou
novela?) de Cassionei remete, também aos confins, limites, bordas de Umberto
Eco em “Da Árvore ao Labirinto”. Mais do que os limites da realidade, o
pensador e romancista italiano tematiza a linguagem. É interessante seu estudo
“Semiose Natural e Palavra em “Os noivos””. Fala em “poética de escritores e
artistas”. E isto cabe bem a Cassionei no caso presente, sua poética de que se serve,
lhe serve para criar um mundo novo, que é correlato ao mundo em que vive, em
que todos vivemos. Não conheço (ainda) o romance “Os noivos” que Eco analisa.
Mas deduzo pela leitura do ensaio que os homens (e as personagens) se fazem
pelas ações e estas são misteriosamente deflagradas pelas palavras
(politicamente corretas ou incorretas, como Cassionei às vezes se refere) e
pelas interpretações. A história “parece” que envolve um país onde ocorre uma
peste. Que todos negam, não admitem, nem verbalizam. Ninguém pode se referir a
ela, por meio da palavra. Acreditam que as coisas (res) acontecem se as
palavras que lhe correspondam forem emitidas. A palavra peste é proibida e quem
a pronunciar (porque será criador da peste que não se quer), deve ser punido. A
peste, se existir (ela existe embora a neguem), será por causa da palavra que
algum incauto tenha pronunciado, de modo indevido. Todos tapam o sol (também os
olhos) com a peneira. Suspendem a realidade com o pensamento, e a restrição a
qualquer interpretação do que seriam aqueles bulbos pretos de que as pessoas em
grande número se cobrem, antes de morrer. Se o pensamento e a interpretação
forem contidos, a peste também será contida, extinta, ela neste caso não pode
ter acontecido. Quem pronunciar esta palavra deletéria é condenado, atacado,
linchado. Surgem os untores para dirimir a peste, por debaixo do pano. (Lembro
agora “Decamerão” de Giovanne Bocaccio, em que o autor retira 10 jovens, 7
rapazes e 3 moças da cidade atacada pela peste negra, e as coloca num ermo
afastado, onde vão ficar em quarentena. Para passar o tempo narram histórias,
na razão de 10 cada jovem, totalizando, é claro 100 novelas.)
Nestes contextos
todos, retomando Cassionei e Eco, os pobres não são donos das palavras, não
conhecem seu peso e seu poder. Os ricos são donos delas, mas sempre se precaveram,
pronunciam-nas de modo enganoso e transverso e o imbróglio é sempre este. A
realidade por mais cruel e indesejável é fruto da palavra e da interpretação
justa ou equívoca. Para que a realidade não aconteça do jeito que acontece, não
devem ser proclamadas a palavra e as interpretações impróprias. Não é o que
acredita Cassionei, assim de pronto. Ele diz, escreve, proclama as palavras que
deflagrarão uma realidade de estranhamento. Depois que a palavra (a sua e a de
quem quer que seja) vem à lume nada mais pode ser feito. A imaginação não
aceita confins, limites, bordas.
Leio em Cassionei a
tentativa de chegar aos confins da realidade com as palavras que são
inteiramente dele. Acho que é Eco que diz que quando se chega aos confins da
realidade/narrativa é certo que algo novo vai surgir, um novo mundo vai ser
criado. É o que faz Cassionei pela sua capacidade de criador. Que mundo é este,
ainda não se sabe.
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