Ensaio de Mauro Klafke sobre “Relatos póstumos de um suicida”

 

Foto de Roni Ferreira Nunes

Mauro Klafke é autor do romance “A guardiã do fogo”, sobre o qual escrevi na minha coluna no jornal recentemente, e outros livros de poesia e contos. É uma das inspirações para o meu mestre imaginário, o Júlio Nogueira, pela idade e os conselhos, um pai literário. Escreveu este ensaio a partir da leitura do meu último romance, “Relatos póstumos de um suicida”, e me enviou por e-mail, ele que não muito afeito à internet e muito menos tem redes sociais. Gentilmente permitiu que eu publicasse o texto no blog.

 Terminei de ler “Relatos póstumos de um suicida” (Editora Bestiário), do Cassionei Niches Petry. Cassionei “brinca” com um assunto recorrente: o suicídio. Posso deduzir que se trata de uma metáfora (embora se tratando de romance) da supressão da realidade e mesmo da imaginação. Isto pode ser dramático, porque neste caso as mínimas referências de vida estarão suspensas. A imaginação, a intuição e a literatura tem como condão de suspender a realidade (em qualquer circunstância) e instaurar um momento de magia. A magia da fantasia, sem compromisso maior com o real. O maior mérito de Cassionei, conforme acredito, é produzir um texto de ficção, o mesmo em seus ensaios, claro, direto, em que não tergiversa.

Nestes tempos estranhos, mesmo antes da pandemia, a realidade do ir e vir (mesmo sem se saber para onde) foi suspensa. O tempo é interrompido e só vai ser retomado adiante, ninguém sabe quando, como e por quem, se todos, quantos, quem sim, quem não. O contexto em que se vive agora se tornou essencialmente espacial, bem mais, mais do que temporal. O espaço se tornou danoso, prisão, restritivo. Se o território pessoal em alguns casos se reveste de características de cárcere, só em poucos momentos pode ser “heimat” (pátria ancestral, paraíso, idílio, reino encantado...), no mais é espaço nostálgico (barzinho, motel, livraria, igreja), até a casa e o pátio ou o apartamento (constrangem pelos dias que se tem de passar aí, em isolamento).

O romance (ou novela?) de Cassionei remete, também aos confins, limites, bordas de Umberto Eco em “Da Árvore ao Labirinto”. Mais do que os limites da realidade, o pensador e romancista italiano tematiza a linguagem. É interessante seu estudo “Semiose Natural e Palavra em “Os noivos””. Fala em “poética de escritores e artistas”. E isto cabe bem a Cassionei no caso presente, sua poética de que se serve, lhe serve para criar um mundo novo, que é correlato ao mundo em que vive, em que todos vivemos. Não conheço (ainda) o romance “Os noivos” que Eco analisa. Mas deduzo pela leitura do ensaio que os homens (e as personagens) se fazem pelas ações e estas são misteriosamente deflagradas pelas palavras (politicamente corretas ou incorretas, como Cassionei às vezes se refere) e pelas interpretações. A história “parece” que envolve um país onde ocorre uma peste. Que todos negam, não admitem, nem verbalizam. Ninguém pode se referir a ela, por meio da palavra. Acreditam que as coisas (res) acontecem se as palavras que lhe correspondam forem emitidas. A palavra peste é proibida e quem a pronunciar (porque será criador da peste que não se quer), deve ser punido. A peste, se existir (ela existe embora a neguem), será por causa da palavra que algum incauto tenha pronunciado, de modo indevido. Todos tapam o sol (também os olhos) com a peneira. Suspendem a realidade com o pensamento, e a restrição a qualquer interpretação do que seriam aqueles bulbos pretos de que as pessoas em grande número se cobrem, antes de morrer. Se o pensamento e a interpretação forem contidos, a peste também será contida, extinta, ela neste caso não pode ter acontecido. Quem pronunciar esta palavra deletéria é condenado, atacado, linchado. Surgem os untores para dirimir a peste, por debaixo do pano. (Lembro agora “Decamerão” de Giovanne Bocaccio, em que o autor retira 10 jovens, 7 rapazes e 3 moças da cidade atacada pela peste negra, e as coloca num ermo afastado, onde vão ficar em quarentena. Para passar o tempo narram histórias, na razão de 10 cada jovem, totalizando, é claro 100 novelas.)

Nestes contextos todos, retomando Cassionei e Eco, os pobres não são donos das palavras, não conhecem seu peso e seu poder. Os ricos são donos delas, mas sempre se precaveram, pronunciam-nas de modo enganoso e transverso e o imbróglio é sempre este. A realidade por mais cruel e indesejável é fruto da palavra e da interpretação justa ou equívoca. Para que a realidade não aconteça do jeito que acontece, não devem ser proclamadas a palavra e as interpretações impróprias. Não é o que acredita Cassionei, assim de pronto. Ele diz, escreve, proclama as palavras que deflagrarão uma realidade de estranhamento. Depois que a palavra (a sua e a de quem quer que seja) vem à lume nada mais pode ser feito. A imaginação não aceita confins, limites, bordas.

Leio em Cassionei a tentativa de chegar aos confins da realidade com as palavras que são inteiramente dele. Acho que é Eco que diz que quando se chega aos confins da realidade/narrativa é certo que algo novo vai surgir, um novo mundo vai ser criado. É o que faz Cassionei pela sua capacidade de criador. Que mundo é este, ainda não se sabe.

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