O crime do crítico

 

 

Uma das razões que explicam por que não sou um bom crítico literário é que eu sou faísca atrasada. Não consigo acompanhar lançamentos, leio alguns quando os autores e as editoras me enviam como cortesia (as editoras já não me mandam mais, preferindo “youtubers”, “blogueiros” ou usuários do Instagram que fazem publicidade para elas). Como professor, do que sobra do meu salário, acabo optando por livros mais teóricos da minha área, que sei que vão ter vida útil prolongada, para consultas, na minha antibiblioteca.

Às vezes, o compartilhamento de livros na internet me salva, o que para muitos é pirataria. Já escrevi sobre obras oriundas de sites que são perseguidos por editoras e escritores e até fechados. Mal sabem eles como a literatura sobrevive por causa da pirataria (inclusive música e filmes são divulgados dessa forma). É uma biblioteca que tem tudo ou quase tudo. Mas como se diz nas redes sociais, vocês não estão preparados para esta discussão.

Foi assim que cheguei à escritora canadense Rachel Cusk. Devo ter lido sobre ela numa resenha, procurei a obra mencionada, “Esboço” e, mais uma vez sem dinheiro sobrando, “baixei” de graça para ler mais tarde. Na última semana, li resenhas que tratam já da continuação do romance, “Trânsito”, que seria o segundo volume lançado no Brasil de uma trilogia. Já havia esquecido do outro livro, então catei nos meus arquivos e o encontrei. Li e gostei um pouco. Como faísca atrasada, escrevo sobre este agora, deixando o segundo para outra oportunidade. Já encontrei uma tradução em espanhol, enquanto a edição brasileira não surgir na internet ou não sobrar uma grana para comprar o livro.

O título me chamou a atenção na outra vez: “Esboço”. A protagonista também me atraiu, visto que é uma escritora, e sou fanático por livros que têm escritores como personagens. Ela se chama Faye (apenas uma vez é citado o seu nome, o que lembra o artifício de Marcel Proust em “Busca do tempo perdido”), mora em Londres e vai a Atenas ministrar aulas de escrita criativa. O que ela faz, no entanto, é praticamente só ouvir histórias, começando por um bilionário que quer fundar uma revista literária e lhe “havia feito o esboço da sua história de vida”; o vizinho de poltrona no voo, que conta sobre sua vida e com quem mais tarde vai passear de barco e ouvir mais relatos; o seu colega de oficina literária e a amiga romancista; os alunos, que escrevem sobre suas intrigas familiares; e, no final, uma dramaturga, que vai substitui-la nas aulas e também encontrou um vizinho de poltrona no voo que lhe contou sua história, dando a ideia do eterno retorno do mesmo, de histórias que circulam, mas sem um desfecho.

As histórias que ouve, portanto, são esboços do que poderia ser um novo conto ou um novo romance. Mas são histórias, ou seja, algo acontece, não como li sobre o livro dizendo que nada acontecia e aí estava o encanto na obra da autora. Muita coisa acontece e ela reconta esses acontecimentos numa narrativa que flui, escolhe uma forma de recontar que nos agarra como leitores que ouvem junto com ela, ecoando como o suposto som do mar que ouvimos numa concha (não por acaso, a imagem escolhida para a capa da edição brasileira).

“Esboço” foi lançado pela editora Todavia, que também publica agora “Trânsito”, sua continuação. A tradução de ambos é de Fernanda Abreu.


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