Queimem depois de ler
O que acontece depois, deixo para o leitor descobrir. Aliás,
se há coisa que Ray Bradbury (cujo centenário foi celebrado em 22 de agosto) mais
prezava era o leitor. Sem este, não há livros, não há histórias para contar. E
ele era um grande leitor. Amava os livros como poucos. Os contos reunidos em “Prazer
em queimar: histórias de Fahrenheit 451” (Biblioteca Azul, 416 p., tradução de
Antônio Xerxenesky e Bruno Cobalchini Mattos) são um prelúdio a sua obra-prima
de 1953, a distopia levada ao cinema por François Truffaut. Além disso, também têm
elementos relacionados à obra “Crônicas marcianas”.
No conto “Os feiticeiros loucos de Marte”, os habitantes do
planeta vermelho são “fantasmas” de escritores como Poe e Shakespeare, cuja
existência depende de algum exemplar de suas obras que ainda existem na Terra e
não foram queimados. O conto também foi publicado em outro livro do autor, “O
homem ilustrado”, com o título “Os banidos”. Edgar Allan Poe também é lembrado
em “Carnaval da loucura”, em que um fã do escritor constrói uma réplica da casa
do Usher (referência a um dos contos de Poe) num tempo futuro, mais
precisamente em 2249 d.C., quando ninguém mais o conhece, visto que “seus
livros foram queimados no Grande Incêndio”:
“Aí começaram a
controlar os livros e, é claro, os filmes, de um jeito ou de outro, um grupo ou
outro, tendência política, preconceito religioso, pressão dos sindicatos,
sempre tinha uma minoria com medo de algo e uma grande maioria com medo do
escuro, com medo do futuro, com medo do passado, com medo do presente, com medo
deles mesmos e das sombras deles mesmos”.
Qualquer semelhança com os dias de hoje não é mera
coincidência.
Em “Pilar de fogo”, outro morto retorna no futuro e guarda
na memória as histórias dos livros, memória queimada no incinerador junto com
seu corpo, numa morte definitiva. Em “Muito depois da meia-noite”, aparece
Montag, o protagonista de “Fahrenheit 451”. No início do conto, sonha que é “um
velho escondido com seis milhões de livros empoeirados”, um menino o denuncia por
infringir a lei contra a leitura e por isso tem sua biblioteca queimada, até
que acorda no Posto de Bombeiros, onde trabalha queimando livros, no ano 2052
d. C. É claramente um dos embriões de seu livro mais importante, pois traz a
cena da mulher sendo queimada junto com seus livros, as críticas à TV e o
comandante ensinando a Montag sobre os perigos de se ler:
“Agora que você
compreende, verá que nossa civilização, por ser tão grande, precisa ser
plácida. Não podemos ter minorias agitadas e irritadas. As pessoas precisam
estar contentes, sr. Montag. Os livros as inquietavam. Pessoas de cor não
gostavam de Little Black Sambo e estavam infelizes. Então queimamos Little
Black Sambo. Os brancos que leram A cabana do pai Tomás ficaram infelizes.
Queimamos esse também. Para manter todo mundo calmo e feliz”.
Algo parecido com a época de “cancelamentos” em que vivemos?
A história seguinte, “O bombeiro”, é o mesmo conto, com pequenas modificações. Um
deles poderia ser cortado. Ambos formam capítulos de “Fahrenheit 451”. São
dispensáveis para quem leu o romance.
Em época em que não se queimam livros, mas se faz de tudo
para que eles não circulem livremente, ler os contos de Ray Bradbury (que
morreu em 2012) nos faz perceber que as distopias estão sempre no presente, não
no futuro. Nos anos 40 do século XX, os nazistas queimavam livros e envenenavam
pessoas. Na inquisição, livros e pessoas eram queimados pela Igreja. Hoje se
queimam livros e pessoas virtualmente, mas falta pouco para ser de forma real.
A propósito, esta é a última coluna, um ano depois da
primeira. Podem queimá-la no churrasco de domingo. Agradeço ao jornal pelo espaço
e aos leitores pela paciência.
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