Um Bartleby dos pampas

 


Um romance? Um livro de contos? Rapsódia? Novelas? Narrativas? Classificar “Ibiamoré, o trem fantasma”, de Roberto Bittencourt Martins, é impossível. E é relevante rotular a obra, lançada em 1981, uma vez que o próprio escritor e L&PM Editores a venderam como um romance. Pelo que se sabe, porém, o livro começou como um conjunto de contos, ganhando prêmio nacional nessa categoria. Aquela velha história de que é o romance que vende mais parece ter sido levado em conta. Como romance, entretanto, o livro é falho.

Vou teimar e chamar de contos, com textos que servem como elo entre as histórias ou, para usar da metáfora ferroviária, elos que ligam os vagões. Cada vagão tem histórias com personagens diferentes, que muito vagamente tem a ver com o trem fantasma. Às vezes as ligações são forçadas. Na verdade, o trem é o que dá unidade aos contos, que se passam em cidades e lugarejos próximos à Ibiamoré do título. Não há nenhum protagonista e os conflitos são muitos. Não pode, portanto, ser romance, embora o gênero seja o mais aberto de todos.

O trem fantasma seria uma lenda que conta sobre um comboio encantado que aparece do nada no meio do nada, deslizando nos campos com suas janelas luminosas como se fosse a Boitatá de outra lenda gaúcha. Quem entra nele, nunca mais sai. As pessoas morrem? Ficam presas infinitamente? Ou tudo são sonhos dos personagens? As narrativas trazem histórias dessa gente do interior, mais precisamente do extremo sul do Brasil ou de lugares que fazem fronteira com a Argentina e Uruguai ou ultrapassam os limites fronteiriços. Falam de relacionamentos amorosos, traições, violência, desmandos políticos, conflitos, vidas que se cruzam e se separam, imigrantes alemães e a dificuldade de estabelecer na nova terra, os dilemas existenciais de um padre, mulheres fortes, algumas conhecidas como “bruxas”, e outras frágeis, homens corajosos e outros covardes. Percorrem um amplo espaço de tempo, indo dos primórdios do povoamento da Província de São Pedro, chegando até a metade do século XX. Isoladas, são boas peças literárias, de um escritor que escreveu e reescreveu seus textos para atingir um alto nível de elaboração artística.

O trem é tão fantasma que desaparece no final, perde sua influência. Como o livro, porém, termina como começa, o final repetindo o início, como em “O tempo e o vento”, do Érico Veríssimo, ele volta a assombrar os pampas, pois seus trilhos são circulares, o fim é o começo, o trem é um boitatá-oroboro. Pena que Roberto Bittencourt Martins também não foi insistente como o seu trem. Afora um livro, esse sim catalogado como de contos, “O vento nas vidraças”, também pela L&PM, ainda na metade dos anos 80, e outro minilivro de contos na década de 90, “Ardente amor e outras histórias”, pela saudosa editora Mercado Aberto, o autor deixou de publicar e suas obras não ganham reedições há anos, por isso poderia estar figurando entre os escritores do “não”, elencados em “Bartleby e Companhia”, de Enrique Vila-Matas, um romance que também não é um romance. E assim finalizo esta crítica que também não é uma crítica.

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