Um conto-resenha anacrônico
Pesquisando na biblioteca do professor Frederico Assmann,
encontrei em uma gaveta de uma escrivaninha um livro que me chamou a atenção,
num primeiro momento, pelo título, já que o tempo é um dos temas que venho
analisando nas críticas e ficções do meu velho mestre. Trata-se de “Cavalos de
Cronos”, de um escritor gaúcho do início deste século, José Francisco Botelho,
publicado em 2018 por uma editora de Porto Alegre em atividade até hoje, chamada
Zouk. Como o exemplar está bastante sublinhado e com anotações nas margens,
imaginei que havia alguma resenha não publicada sobre a obra que tivesse
escapado ao meu escrutínio. Por acaso (o acaso é outro tema que o Fred estudou,
principalmente nas análises dos romances de Paul Auster), uma folha inserida
entre as últimas páginas caiu aos meus pés. Ao desdobrá-la, me deparo com uma
crítica inédita, escrita à mão, com a data de 06 de agosto de 2061, no ano
passado, portanto, cinco dias antes da morte do mestre. No cabeçalho, um aviso:
“não deve ser publicada”. Por que Fred não quis que viesse à luz uma simples
resenha sobre um livro de um escritor desconhecido? Deveria eu, seu aluno predileto e responsável
pelo estudo e divulgação de seus escritos, obedecer ao aviso, apesar de ele ter
me pedido que publicasse tudo que deixara inédito?
Quando li a resenha, entendi por que o mestre a escamoteou.
Inveja. O texto reconhece o talento do escritor que até hoje eu não conhecia (Fred
nunca me indicou o autor), sua capacidade intelectual, sua fabulação, sua
erudição, o trato com a linguagem, a utilização da intertextualidade e outros
tantos predicados que o próprio Frederico Assmann queria ter e achava que não
tinha. Escreve ele: “(...) na época em que publiquei a maioria das minhas
críticas, eu havia recebido do autor um exemplar autografado de “Cavalos de
Cronos”. Mas o acaso, sempre o acaso – ‘a
Fortuna subitamente sorriu (ou, ao menos, simulou um sorriso – o que, para os
mortais, parece a mesma coisa)’ –, fez com que o livro se extraviasse numa
viagem de férias a Balneário Camboriú. Devo tê-lo esquecido na beira da praia,
sem nem ao menos ter iniciado a leitura. Anos depois, na mesma cidade, o achei
em um sebo, com a folha em que havia o autógrafo arrancada. Deveria ser o mesmo
exemplar. Ainda demorei, porém, para ler. Creio que essa decisão me deu mais um
tempo de vida. Eu li o livro na hora certa, caso contrário, a inveja e,
principalmente, as coincidências me matariam mais cedo”.
Frederico Assmann morreu de desgosto no mês de agosto, sempre
reclamando por não ser reconhecido como deveria. O texto, portanto, foi o
último que escreveu, numa época em que o mestre estava bastante melancólico e dizia
que não queria receber visitas, como se costumasse recebê-las.
Pois “os misteriosos liames tecidos pelas Parcas”, como Botelho
escreveu no conto que dá título ao livro, fez com que “Cavalos de Cronos”
caísse nas minhas mãos. Uma obra como essa não vingaria nos dias de hoje,
dominada por livros eletrônicos de celebridades das redes digitais. Por isso
não o conhecia, assim como parte da Alta Literatura brasileira do passado,
embora o mestre, um dos últimos defensores dessa Arte, tenha me mostrado o
caminho para encontrá-la. Venho tentando.
Conforme fui lendo o livro, as anotações e a crítica,
entendi o que o velho Fred quis dizer com coincidências. O livro parecia
retratá-lo na maioria dos contos. E mais. O professor escreveu que tinha
pensado na maioria dos enredos, mas nunca os pôs no papel. Era como se o
escritor lesse seus pensamentos ou praticasse, um “plágio anacrônico”, conforme
lemos no conto “O imperador de bambu”. Numa margem do relato, Frederico
escreveu, “Professor Yuë c’est moi”,
algo que seria dito, trocando-se o nome, por outro personagem numa história
posterior, talvez o melhor, mais inquietante e premonitório conto. Chegaremos a
este depois.
Um personagem, Camilo Castanho, mencionado no conto “Uma
estória bem contada”, é revisor de um jornal chamado Gazeta do Sul e havia
escrito um poema, “A jangada de Caronte”, cujos excertos conformam dois poemas
narrativos no livro. Fred escreveu durante um tempo colunas de literatura e
crônicas para um jornal de mesmo nome em Santa Cruz do Sul. Não era revisor,
mas dava muito trabalho para esse importante profissional. Foi o acaso?
Com a leitura de “O silêncio dos campos”, o professor lembrou-se
de momentos de sua infância em que visitava a chácara de sua avó paterna, no
interior de Rio Pardo, e o silêncio desse lugar ermo (palavra muito usada por
Botelho) era interrompido por sons de animais que o assustavam, ainda mais depois
de ter ouvido à beira do fogão à lenha histórias contadas pelo seu pai,
envolvendo sempre um temido perau nas proximidades. Já “Cotuba dos ermos” o fez
recordar quando ficava um bom tempo sem ver seu pai depois que ele se separara
de sua mãe, deixando-a cuidar sozinha do filho e da filha. Menciona também que
ele costumava usar um pichará, como o personagem do conto.
Se Botelho criou um lugar fictício e distópico, chamado
Tingitana, Assmann criou um país chamado Carácolis em suas crônicas satíricas para
o jornal. Sem o mesmo brilhantismo que o outro escritor, anotou nas margens do
conto.
As mais impressionantes coincidências se dão no conto “Neste
mundo”, em que também o caráter profético de José Francisco Botelho se destaca.
O protagonista, Aparício Nunes Aquidaban, é um escritor desconhecido de uma cidade
do interior, que teve pouco reconhecimento. Assim como o Fred, resolve morar
sozinho, colocando em prática seus “projetos de misantropo”. Fred acrescenta
nas anotações que ambos eram chamados de “o Velho dos Livros”, e por aí vão as
coincidências.
O que mais chamou a atenção do crítico, porém, foi que o
conto previu a guerra entre Brasil e Argentina, que no enredo recebe o nome de Guerras
do Conesul. Há uma espécie de realidade alternativa, em que dois Aquibadans se
comunicam por anotações nas margens de um manuscrito deixado em uma gaveta. Numa
realidade, ocorre a guerra, na outra não, assim como as cidades são distintas,
embora tenham o mesmo nome, Mirador. “Como é de conhecimento de todos”, escreveu
Fred na resenha inédita, “no seu terceiro mandato, um presidente cujo nome não
quero escrever, mas que ficou para a História por ser um Nero do século XXI,
declarou guerra ao país vizinho. Por sorte, ela não durou muito, sendo a
responsável apenas por uma lei esdrúxula que proíbe que clubes de futebol no
Brasil contratem jogadores e treinadores argentinos”.
Vale lembrar que, no conto que intitula a obra, o narrador
diz que “os cavalos – dependendo do dia e do estado de espírito – conseguem
prever o futuro”. Há uma foto de quando Fred era criança bem pequena e tentava,
auxiliado por um tio, montar num cavalo, que parecia estar inquieto. No verso,
ele escreveu o ditado: “cavalo encilhado só passa uma vez”. O professor, diga-se,
gostava de premonições em obras de arte. Certa vez, me mostrou um disco de
vinil de uma banda dos anos 1970, “Supertramp”, cuja capa, refletida no
espelho, previa o atentado terrorista de 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque.
Por acaso, o disco foi lançado em 1979, ano de nascimento do professor.
Uma dúvida me surgiu. Será que José Francisco Botelho não
era um pseudônimo do Fred, já que não há foto e nem mesmo dados biográficos do
autor no volume? Quem escreve a orelha do livro foi Dilan Camargo, autor de “Chamem
o poeta”, poema que o professor declamava em suas aulas. Além disso, quem
escreve o prefácio do livro é Gustavo Melo Czekster, que também escreveu a
orelha de um dos livros de contos de Frederico Assmann. “Cavalos de Cronos”
seria um dos seus jogos literários e talvez por isso eu tenha gostado tanto de
lê-lo? Enfim, tenho que pesquisar mais a fundo para comprovar essa hipótese. Talvez
seja apenas coincidência. Não encontrei nas margens, pelo menos, nenhuma
anotação que diz “José Francisco Botelho c’est
moi”.
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