Filhotes dos ratos

 


Um pobre homem, de 1927, é o primeiro livro de Dyonelio Machado, que viria a ser conhecido pela segunda obra, Os ratos, de 1935. Os contos reunidos no volume já apontavam os caminhos que o romancista seguiria: desvalidos, prostitutas, funcionários públicos, loucos, escritores frustrados e outras figuras do cotidiano das cidades vivendo os percalços da vida e seus impasses existenciais, quase sempre com a sombra da morte os perseguindo. Aliás, o primeiro conto abre com uma morte: “Acabo de enterrar o meu velho amigo Sanches”, diz o narrador, para quem o falecido fora “um dos raros homens interessantes deste hemisfério”, considerado louco devido a sua obsessão pela língua latina.

A melancolia também é algo que atravessa as personagens, inclusive intitulando um dos contos, embora as narrativas tragam certo tom de humor e ironia, como apontou o crítico José Geraldo Couto. Segundo Moisés Vellinho, em um ensaio de Letras da província, essa melancolia veio do ambiente da infância do escritor em sua cidade natal, Quaraí, no Rio Grande do Sul. É justamente sobre essa fase da vida o conto mais belo do livro, “Ronda das gotas” (que seria o primeiro capítulo de um romance por anos inédito), em que uma menina observa da janela de casa as gotas da chuva deslizando nos fios de luz da rua, tendo, a partir disso, sua primeira dúvida metafísica: “Aproveitavam um declive do fio, doce e curvo como um seio, e precipitavam-se, velozes, como se brincassem ‘de pegar’. [...] Superior ao prazer que lhe dava a passagem ininterrupta das gotas: era descobrir-lhes a origem!”

Em vários contos aparece um “pobre homem”, como nos versos de um poema de Sylvino Guimarães, personagem de “Caso singular”: “O pobre homem que crê ou num deus ou num mito”. Em “O Sr. Ferreira”: “Um homem pobre, simplesmente, o ar simpático do funcionário público que matou uma a uma todas as ilusões no serviço do estado e que empobreceu serenamente e sofreu com método [...]”. Confesso que me identifico com o personagem, pelo menos nesse ponto. E, claro, há o pobre homem do último conto, o que dá título ao livro, um sujeito que perdeu a mãe de sua filha no parto e depois a própria filha, que vai para outra cidade e se torna prostituta. Quando, doente, ela volta para o lar, o homem não cuida dela, preocupado com o trator novo para sua plantação: “A história desse pobre homem era, a um tempo, um drama de família e um caso de negócio”.

Há ainda uma curiosa história de um prefeito que extinguiu o cemitério da cidade, do prisioneiro de guerra que foi executado sem receber nenhum tiro, de um casal que resolve cometer suicídio, “naquele fim trivial das tragédias de amor”. São 16 contos na segunda edição, de 1995, já esgotada, da Ática, que tenho em mãos, um a menos do que a primeira edição, pois um conto foi retirado pelo próprio autor para edições futuras, embora retorne na edição mais recente e disponível, de 2017, da Editora Siglaviva, comemorativa, trazendo ainda outros contos esparsos de Dyonélio Machado e uma considerável fortuna crítica sobre o livro. Narrativas curtas e cenas do cotidiano que prenunciavam a história de um sujeito que precisa, num espaço de 24 horas, conseguir dinheiro para pagar o leite do filho e se livrar de ratos na madrugada. Mas aí é tema para outro texto.

(Cassionei Niches Petry)


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