Mil leituras
por Cassionei Niches Petry
Sinto-me lisonjeado quando escritores
estreantes me enviam suas obras para leitura. O que veem num resenhista tão
obscuro, perdido no interior do Rio Grande do Sul? Nessas horas bate aquele
orgulho, mas também uma responsabilidade. O novo escritor quer ser lido e
talvez os grandes críticos e os resenhistas que têm espaço na grande mídia ou
em sites de literatura mais conceituados só têm tempo para autores já
conhecidos e para atender às médias e às grandes editoras. Críticos como eu, de
certa maneira, dão atenção aos ainda não totalmente conhecidos.
E é com grata surpresa que aportam
aqui na toca (minha biblioteca e local de escrita onde me escondo, introspectivo
e solitário) boas obras, como Mil Placebos, romance de estreia de
Matheus Borges, lançado pela editora Uboro Lopes em 2022. Egresso da cultuada
oficina literária de Luiz Antônio de Assis Brasil, em Porto Alegre, o autor tem
formação em audiovisual e é roteirista, por isso a ênfase na descrição de
cenários e o ritmo acelerado de um filme de ação que perpassam a narrativa.
O enredo é, num primeiro momento,
policial, uma história detetivesca. Assim nos parece no início. Os passos do
detetive são acompanhados pelo narrador protagonista que não sai do seu quarto,
introspectivo e solitário na frente do computador. Ele próprio vira,
supostamente, criminoso, e essa informação nos é antecipada nas primeiras
páginas: “É a minha história e, naturalmente, uma história humana. A história
de, dentre outras coisas, como matei um homem pela primeira vez”. Será mesmo? Podemos
acreditar no que diz? Antes disso, porém, o protagonista, do qual ficamos
sabendo apenas o nickname usado em fóruns na Internet, Eyeball Kid, vê
sua vida transformada quando fica sabendo da morte de sua paixão virtual, Jersey
Girl, que conheceu em um fórum e morava nos EUA, e depois recebe a notícia do
desaparecimento do moderador do mesmo fórum, Dot King. Coincidência?
A trama segue numa mistura de ficção
científica que lembra Philip K. Dick na abordagem de fármacos que distorcem a
realidade. O leitor entra na paranoia do narrador, visita seus pesadelos, os sonhos
no momento de vigília e viaja junto com ele no submundo virtual, na “deep” ou “dark
web”, não sei, pois desconheço a nomenclatura dessas profundezas. Sei que é um poço
sem fundo, perigoso e criminoso. No entanto, é o inglês J. G. Ballard, e sua
ficção especulativa que lida com a psicologia relacionada à tecnologia, a referência
maior de Matheus Borges, explícita na escolha de uma das epígrafes. Uma cena em
que um táxi cai no Arroio Dilúvio na capital gaúcha me fez lembrar de Crash:
estranhos prazeres, romance de Ballard que foi levado ao cinema por David
Cronemberg, outro artista que orbita na temática do estranho, do psicótico, da
paranoia, das doenças, das deficiências físicas e dos fetiches.
Um livro que nos leva à dúvida sobre
o que realmente aconteceu, com nós difíceis de desatar, que deixa uma sensação
de incompletude. Gosto disso. Vale ressaltar que o título, ao parafrasear Mil
platôs, Deleuze e Guattari, pode trazer outra camada para a discussão sobre
o romance, numa teia filosófica sobre o capitalismo (a indústria farmacêutica)
e a esquizofrenia (o protagonista é diagnosticado com “transtorno de
personalidade esquizoide”). Fica a sugestão para outro leitor-crítico. Termino
por aqui com a ideia de que os mil livros da minha biblioteca (acho que são bem
mais do que isso), são placebos que me ajudam a seguir a vida nesse mundo
caótico. Com este livro de Matheus Borges, agora são mil e um placebos nas minhas
estantes.
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