Leitores premiados
por Cassionei Niches Petry, autor
de Desvarios
entre quatro paredes, Editora
Bestiário
Temos um jogo nesse primeiro romance de Julio Cortázar, Os prêmios (que ganha nova tradução de
Ernani Ssó pela Companhia das Letras), assim como nos óbvios O jogo da amarelinha (lógico que o
título original, Rayuela, é bem
melhor, mas não temos um equivalente em português: “sapata” seria pior) e Final do jogo. Jogo no sentido literal,
mas também no simbólico.
Um grupo de argentinos é sorteado, numa estranha loteria, para
uma viagem em um cruzeiro. Os dezoito personagens, de diferentes idades e
classes sociais, sabem muito pouco sobre o prêmio, nem mesmo o destino que o
navio seguirá. Intercalando o foco narrativo nos diferentes personagens,
ficamos sabendo aos poucos sobre suas vidas, assim como o verdadeiro caráter de
cada um começa a ser revelado e as divisões de opinião aparecem, na medida em
que outro mistério precisa ser solucionado: por que lhes foi vedado conhecer a
outra metade da embarcação, onde fica a popa? O que os tripulantes estariam
escondendo no outro lado? O que seria uma viagem prazerosa, que faria os
sorteados esquecerem os problemas cotidianos, vira uma investigação com tintas
de suspense, até se tornar um pesadelo para todos os envolvidos.
Há muitas camadas de leitura no romance. Embora o próprio
Cortázar tenha dito em uma palestra que sua primeira narrativa longa havia sido
apenas um “exercício de estilo” e um “divertimento”, Os prêmios é rico em simbologias. Podemos pensar no Malcolm, nome
do navio, como uma representação da Argentina, com seus conflitos de classe e
polarização política. “O país está muito bem representado”, afirma um
personagem sobre seus companheiros de bordo. No âmbito artístico, o navio é uma
metáfora da própria escrita. O escritor muitas vezes não sabe que rumo terá sua
obra e só o descobre depois que criou os personagens e delineou seus caracteres,
assim como há zonas vedadas ao autor, brancos no enredo que ele não consegue
acessar e o bom seria realmente ele não ultrapassar esse limite. Se o faz, as
consequências podem ser graves.
Uma das referências de Cortázar para os pontos de vista
cruzados no enredo foi um brasileiro, pelo menos é o que deixa entender a
menção desse escritor na fala de um personagem: “Como? Não se lê quando se
estuda? Sim, claro que se lê, mas apenas livros didáticos ou anotações. Não o
que se chama um livro, como um romance de Somerset Maughan ou de Erico
Verissimo”. Vale dizer que o escritor gaúcho escreveu Caminhos cruzados e O resto é
silêncio com a técnica do ponto e contraponto, inspirado em Aldous Huxley.
Ou estaria Cortázar ironizando os escritores de sucesso?
Há quem diga que Os
prêmios é um romance menor de Julio Cortázar. Dizer isso, porém, não
desmerece a obra, só reafirma que O Jogo
da amarelinha e a maioria dos seus contos são tão superiores em qualidade literária
que nem ele mesmo conseguiu repetir o feito. O romance (que é anterior,
diga-se, à sua obra-prima) é só mais uma das peças do grande jogo cortazariano
que o autor e leitor manipulam e disputam para ver quem sai vencedor. O leitor,
mesmo perdendo, é quem ganha o prêmio.
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