Capitu e o capítulo, Virgília e a vírgula

 

por Cassionei Niches Petry

Júlio Bressane recorreu a Haroldo de Campos para dar título ao seu filme de 2021, mas que só agora, em 2023, chega aos cinemas. Capitu e o capítulo foi retirado de um diálogo entre o cineasta e o poeta concretista. A ideia é de que o importante no romance Dom Casmurro é a divisão em curtos capítulos. O mesmo se dá em outras obras de Machado de Assis, como em Memórias póstumas de Brás Cubas, também levada à grande tela por Bressane. Neste filme de 1985, inclusive, foi inserida uma cena em que mulheres recitam um poema concreto de Haroldo: “se / nasce / morre nasce (...)”. Na mesma obra, Bressane destaca capítulos do romance em que Machado poderia ser considerado precursor do concretismo, como o LV, “O velho diálogo de Adão e Eva”. O filme, simplesmente chamado Brás Cubas, poderia se chamar Virgília e a vírgula. E, se Bressane resolver adaptar Quincas Borba, pode usar o título Sofia e o sofisma. Por que não?, perguntaria o narrador defunto.

Mas voltando, estimado leitor, à película recente. Júlio Bressane é um diretor que não facilita nada para o espectador. Quem não leu o romance machadiano pode entender muito pouco do que está acontecendo. Bressane, pressupõe, claro, que seu espectador conhece arte tanto quanto ele, por isso as referências que aparecem são muitas, como pinturas ou cenas de outros filmes do diretor (como a cena do “necrofone” que abre o já citado Brás Cubas). O que importa são as imagens, as palavras, as frases curtas, mas também as digressões, os silêncios, as cores.

Como se trata de uma adaptação ou, como prefere o cineasta, uma extração da obra machadiana, a pergunta que fica é sobre o enigma de Capitu. Pois no filme fica claro que Capitu (Mariana Ximenez) traiu, mas não só ela. Capitu beija Escobar (Saulo Rodrigues) e Bentinho (Vladimir Brichta) beija Sancha (Djin Sganzerla), esta mais insinuante do que a outra. Capitu também acusa Betinho de ter uma paixão platônica pelo amigo nadador de braços fortes. Os braços sempre foram indícios de desejo nas narrativas de Machado de Assis, basta lembrar o conto “Uns braços”.  Bem, o leitor ainda pode dizer que ainda é Bentinho, ou melhor, o já velho Dom Casmurro quem conta a história, por isso pode ainda ser uma invenção de uma mente ciumenta. Mas penso que o Casmurro (vivido pelo ator Enrique Díaz) que aparece escrevendo sua história em uma maravilhosa biblioteca é na verdade Machado de Assis, inclusive em uma cena sofre de um ataque epilético.

Das poucas transposições de Dom Casmurro para as telas, essa é a mais hermética e artisticamente elaborada. É muito mais Bressane que Machado, lógico. Por isso explora pouco o texto machadiano. Senti falta do velório de Escobar, quando Bentinho começa a desconfiar da fidelidade Capitu. O diretor opta por inventar outro momento, bem mais precoce, para a desconfiança. Também o personagem José Dias, que o escritor Raimundo Carreiro, em artigo recente no jornal literário Rascunho, sugere ser o verdadeiro narrador do romance, não foi bem explorado. Capitu e o capítulo é uma obra “oblíqua e dissimulada” e merece ser vista.


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