Relatos póstumos de Machado de Assis

 




 Esta resenha seria intitulada “Um romance padrão Machado”, pois quando escrevi sobre a obra mais conhecida de Sérgio Rodrigues, O drible, há quase 10 anos, tasquei um “romance padrão Fifa”. O escritor achou ambíguo, como me disse de forma privada (e o mau-caráter aqui expõe): seria um elogio ou uma crítica? Tire suas conclusões acessando o link da resenha no final deste texto, caro leitor.

Mas, como disse, mau-caráter que sou, mudei o título para fazer referência a um romance meu, Relatos póstumos de um suicida. Não, claro que não (mas também sim). É que A vida futura (Companhia das Letras, 168 páginas), recente romance do Rodrigues, tem como narrador o finado (há muitos anos) Machado de Assis e, portanto, emula sua linguagem e as outras características do Bruxo do Cosme Velho, como a ironia, a intertextualidade e os capítulos curtos. Meu humilde e obscuro (no sentido de desconhecido e ignorado) romance faz só referência ao Memórias póstumas de Brás Cubas. Fim do cabotinismo.

Em A vida futura temos um Machado “vivendo” numa espécie de céu de escritores. Que tal compartilhar uma mesa de bar com Dostoiévski e Flaubert e discutir questões polêmicas com essas figuras? Uma dessas questões é a tendência atual (sim, os autores do século XIX estão atentos aos debates do século XXI!) de, digamos, amenizar a linguagem dos escritores antigos. Um desses, chamado apenas de Jota pelo narrador, é José de Alencar, que é quem mais se revolta com o fato de ser “reescrito”. Machado também é Jota, de Joaquim, e outros escritores brasileiros aparecem somente com epítetos: o Dramaturgo é Nelson Rodrigues, o Gaúcho, Erico Verissimo, e o Delegado é Rubem Fonseca, recém-chegado ao céu. Pois os espíritos dos Jotas resolvem descer ao Rio de Janeiro, nos primeiros meses de 2020, quando a peste nos atinge, e dar um susto pelo menos em quem resolveu simplificar a obra deles, uma professora universitária: “De uma forma ou de outra, garantia que todos os nossos problemas se dissolveriam por mágica naquela travessura de vaudeville, que faria a professora, tremendo de medo, desistir na mesma hora de seu plano criminoso”.

O que se segue é uma série de cenas curtas em que nossos escritores-personagens se deparam, por exemplo, com a violência, abuso sexual de menores e racismo nas ruas do Rio (“O senso de irrealidade que dava a nossos passos um peso incerto de algodão ou chumbo fazia com que nos sentíssemos alternadamente numa masmorra medieval, no porão de um navio negreiro, numa caverna pré-histórica, num campo de batalha napoleônica após tétrica carnificina, na própria caldeira fervente de Asmodeu.”), depois com professores e alunos dispostos a modificar os clássicos em nome de suas ideologias, gente que também quer impor o uso de pronomes neutros (“Todes?! Seria um deus nórdico?”), uma delas uma jovem negra por quem Machado acaba quase que se apaixonando e que tinha o lugar de fala para abordar a questão de o escritor negar ser negro (“A moça era, ela própria, negra. Compreendi que só por essa razão lhe permitiam dizer o que dizia.”). Por fim, traficantes, milicianos e políticos fazem uma festa em uma mansão de um chefe da milícia no morro, enquanto o fantasma de Machado de Assis vê, lá embaixo, na cidade, as almas das vítimas da pandemia que inicia se desprendendo dos corpos como raios de luz.

Autor do já citado O drible, de Elza, a garota e do livro de contos A visita de João Gilberto aos Novos Baianos, todos já resenhados por aqui (é só clicar nos títulos para ler os textos), Sérgio Rodrigues escreve uma comédia de costumes com elementos do fantástico e repleta de referências cultas e populares, além de ter uma linguagem criativa e ousada. Podemos, vá lá, dizer que é um romance “padrão Rodrigues”.

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