Poe e a insanidade como arte

 


    Há alguns anos, numa escola pública, um professor de literatura teve uma daquelas experiências, que já não acontecem mais, em que conseguiu despertar o interesse dos alunos pela obra de um escritor. Realizando uma sessão de cinema na sala de aula, apresentou-lhes a obra de Edgar Allan Poe através do filme O corvo, direção de James McTeigue. O ator John Cusack interpreta o próprio escritor, que se vê envolvido na perseguição de um assassino que comete crimes e deixa pistas, sempre inspirado em suas histórias. Depois de assistir ao filme, uma aluna disse que ficou com vontade de ler os livros do Poe. Restou ao professor abrir um largo sorriso. Velhos tempos!

    Poe já teve muitas adaptações de sua obra. Há uma excelente série televisiva, The following, com um mote parecido com o do filme citado, porém o assassino já é conhecido desde o primeiro episódio: um sedutor professor de literatura que transformava seus crimes em arte e, o pior, conseguindo arregimentar uma porção de seguidores. Nesta semana, a Netflix lançou uma série inspirada em vários contos do escritor.

    Precursor da literatura de horror moderna, o romancista, contista e poeta americano Edgar Allan Poe nasceu em Boston, EUA, no dia 19 de Janeiro de 1809 e morreu em outubro de 1849, aos 40 anos de idade, dias depois de ser encontrado em um profundo estado de embriaguez, semiconsciente e sujo, em uma rua de Baltimore. Mestre do conto, escreveu histórias como “A queda da casa de Usher” (que dá título à série mencionada) e “O gato preto”, em que estão presentes o mistério e o terror góticos típicos do século XIX. Já “Os crimes da Rua Morgue” e “A carta roubada” o tornaram o criador de histórias do gênero policial. O poema narrativo “O Corvo”, por sua vez, é um dos seus textos mais populares, sendo inclusive adaptado num dos episódios de Os Simpsons.

    “Mas eis o ponto mais importante: notaremos que esse autor, produto de um século orgulhoso de si mesmo, filho de uma nação mais orgulhosa de si mesma que qualquer outra, viu com clareza e afirmou impassivelmente a perversidade do homem”, escreveu o poeta Charles Baudelaire num texto com o qual divulgou a obra do escritor aos franceses. Os personagens de Poe são maus, muito maus. O protagonista de “O gato preto”, por exemplo, tortura e enforca seu bicho de estimação e também mata a sua mulher, para depois emparedá-la no porão de sua casa. Em “O poço e o pêndulo”, temos a crueldade humana expressa na tortura física e psicológica de um condenado pela inquisição da Igreja Católica. Em “O barril de Amontillado”, Fortunato, motivado por uma vingança, trama a morte de um desafeto, emparedando-o vivo nas catacumbas de seu palácio. Já em “A máscara da Morte Rubra”, o príncipe Próspero reúne seus súditos para se isolarem em uma abadia fortificada e depois promove um baile de máscaras. Um dos mascarados, porém, estava ali para outro tipo de diversão.

    Poe descreve nossos medos como poucos. Tenho medo, por exemplo, de que exista algum doppelgänger, um duplo meu, cometendo alguns atos que eu não cometeria e sobre os quais levaria a culpa. No conto “William Wilson”, temos justamente a história de um duplo que atormenta, desde a época da escola, a vida do protagonista. Ele tem o mesmo nome, nasceu no mesmo dia, e ainda por cima usando as mesmas roupas que ele. “No lugar onde momentos antes eu nada vira, havia agora um grande espelho… Aproximei-me dele cheio de terror e vi caminhar para mim a minha própria imagem, com o rosto extremamente pálido e todo salpicado de sangue, avançando a passos lentos e vacilantes.” Pergunto-me às vezes: e se o meu duplo me encontrasse? Seria eu dominado por ele? Ou teria que matá-lo, já que o mundo é pequeno demais para dois Cassioneis? Ou, o mais provável, ele me mataria?

    Julio Cortázar escreveu sobre obra de Poe: “atingindo dimensões extra-temporais, as dimensões da natureza profunda do homem sem disfarces, é tão profundamente temporal a ponto de viver num contínuo presente, tanto nas vitrinas das livrarias como nas imagens dos pesadelos, na maldade humana e também na busca de certos ideais e de certos sonhos”. Pois Poe, além das várias adaptações, tem várias traduções de seus contos disponíveis nas livrarias do Brasil. Para ficar em apenas uma, recomendo a de José Paulo Paes, editada pela Companhia das Letras e intitulada Histórias extraordinárias.

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