Uma grande ópera literária



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Uma grande ópera literária


Talvez seja o livro que eu mais reli, inclusive porque foi objeto de monografia de conclusão do Curso de Letras: Ópera dos mortos, de Autran Dourado. A HarperColins está reeditando esta obra, assim com as demais do genial escritor mineiro, o autor de tantas histórias com personagens marcantes – como a Biela de Uma vida em segredo – e um trabalho criterioso no que se refere a técnicas literárias – como em A barca dos homens.
Ópera dos mortos foi publicada originalmente em 1967 e conta a história de Rosalina, filha de João Capistrano e neta de Lucas Procópio Honório Cota, figuras emblemáticas da cidade de Duas Pontes (a Macondo do escritor, que aparece em outros romances e contos). Morto seu pai, ela se isola do resto da cidade no sobrado da família, cujo primeiro andar foi construído por seu avô e o segundo por seu pai (protagonistas de dois romances do autor publicados posteriormente: Lucas Procópio, de 1984, e Um cavalheiro de antigamente, de 1989). Tem como companhia apenas a empregada Quiquina, espécie de anjo da guarda e consciência de Rosalina e que serve de ligação indireta dela com a cidade. Sua vida, no entanto, se transforma com a chegada de Juca Passarinho, um forasteiro que, apesar da resistência das duas moradoras, passa a trabalhar no sobrado. Aos poucos, ele vai conquistando o coração duro de Rosalina. Durante o dia, Rosalina o trata com rispidez e, à noite, entrega-se ao prazer com ele.
O espaço é peça chave na história. Boa parte do primeiro capítulo é reservada para a descrição de como é, no tempo presente em que a história é contada, e como era antigamente o sobrado em que vive a personagem principal, nos dando fortes indícios do que irá acontecer mais adiante. Se agora o sobrado está em ruínas, antes era imponente: “Ainda conserva a imponência e o porte senhorial, o ar solarengo que o tempo de todo não comeu. As cores das janelas e da porta estão lavadas de velhas, o reboco caído em alguns trechos como grandes placas de ferida mostra mesmo as pedras e os tijolos e as taipas de sua carne e ossos, feitos para durar toda a vida”. O atual estado da casa representa a situação da família Honório Cota, destruída por várias circunstâncias, mas sem perder a fama na cidade, assim como a casa, cuja presença continua impondo respeito.
A construção do sobrado, abordada nos primeiros e segundo blocos (assim são chamadas as partes do romance) também é importante e representa a personalidade dos personagens. O primeiro pavimento da casa foi construído por Lucas Procópio Honório Cota “ao jeito dele; pesada, amarrada ao chão, [...] a porta grossa, rústica, alta”. Já seu filho, João Capistrano, com a personalidade diferente da do pai, construiu o segundo pavimento com linhas mais suaves, sofisticadas. A junção dos dois pavimentos e suas respectivas fachadas representa a personalidade de Rosalina.
No terceiro bloco e nos seguintes, a narrativa se centra em Rosalina, sua empregada, a cidade e o forasteiro Juca Passarinho. Há toda uma simbologia que representa a decadência moral: as voçorocas, por exemplo, que são as erosões de terra que “engolem” a cidade; a Rosalina que deixa o forasteiro entrar na sua casa, símbolo de refúgio e proteção da mulher; a bebida, que desperta os instintos mais escondidos da personagem, fazendo com que ela se torne uma mulher de dia e outra à noite; a Quiquina, muda, representando a falta de comunicação entre as pessoas, e que não conseguiu impedir que Juca Passarinho entrasse no sobrado.
O desfecho dessa ópera é trágico. Seus personagens já estão mortos, como menciona o título. Ou melhor, estão mortos em vida. A orquestra para, as vozes emudecem, o cenário é destruído. Das ruínas, o espectador, ou o leitor, ouve apenas gritos de almas pedindo socorro.

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