Resenha sobre 2666, de Bolaño, na Gazeta de hoje
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Uma almofada nada confortável
Quem
lê minhas resenhas nesse espaço sabe que elas não são nem um pouco
objetivas. Uso muito o “eu” porque leio realmente os livros e acho um
desrespeito com o leitor ficar apenas reproduzindo o release da
editora. Da mesma forma, acabo resenhando aquelas obras que me pegam
pelo cangote e esfregam minha cara no chão, ou então me jogam de
encontro a uma parede, de preferência bem áspera. A boa literatura não
serve para nos deixar felizes. Ela deve nos incomodar, nos tirar da
posição cômoda que muitas vezes vivemos, da “catatonia integral” como
diz uma canção do Gonzaguinha. O romance 2666, de Roberto Bolaño (Companhia das Letras, 856 páginas, tradução de Eduardo Brandão), nos faz justamente isso.
O escritor, nascido no Chile em 1953, viveu também no México e na Espanha. Começou a chamar a atenção em 1998, com um prêmio recebido para Os detetives selvagens.
Depois de sua morte em 2003, provocada por uma doença hepática, passou a
ser cultuado e suas obras alcançaram ainda mais reconhecimento da
crítica, além da boa vendagem, inclusive nos EUA. Alguns já chamam esse
fenômeno de “bolañomania”. Foi durante a doença, sabendo que seu fim
estava próximo, que Roberto Bolaño dedicou-se a escrever o que seriam
cinco romances diferentes, com os quais queria amparar financeiramente a
família por um tempo.
Devido, porém, à unidade entre eles, o editor, em acordo com os
familiares, os publicou num só volume. Essa decisão foi fundamental para
a qualidade da obra.
Imagine
uma pessoa atraída por teorias conspiratórias – e Bolaño adorava esse
tipo de fabulação, segundo seu amigo, o escritor Rodrigo Fresán – se
deparando, em uma livraria, com exemplares do livro 2666
expostos nas prateleiras. Seja na capa ou na grossa lombada, a cifra se
destaca. O conspiracionista logo fará a ligação com o número da Besta,
descrito no Apocalipse bíblico. No caso, é o mal multiplicado por dois. O
numeral é um dos enigmas espalhados na obra do chileno Roberto Bolaño e
aparece em dois outros romances, em Amuleto e no já citado Os detetives selvagens, num
jogo intertextual típico do autor. Nesse último, a personagem Cesárea
Tinajero, fala sobre “os tempos que se aproximam” e que a data seria por
volta de “dois mil seiscentos e pouco”. Esse paradoxo reforça a ideia
apocalíptica de que o fim está próximo e, enquanto não chega, o mal toma
conta do mundo.
No
romance, esse mal se manifesta de várias formas, mas o autor não nos
joga logo nesse inferno. Primeiro nos conquista, na primeira parte, com a
história de quatro críticos europeus, três homens e uma mulher, de
nacionalidades diferentes, especialistas na obra de um escritor alemão
chamado Benno von Archimboldi. A busca pelo seu paradeiro – que é fio de
Ariadne na estrutura labiríntica da obra – os leva para a cidade de
Santa Tereza, na divisa do México com os EUA. Mas antes, na Inglaterra,
dois deles espancam um taxista, por ele ter ofendido a mulher. Esse ato
de violência e muitos outros que pontuam a narrativa são indícios das
coisas ruins que estão por ser narradas. Tal qual Virgílio, conduzindo
Dante na Divina Comédia, Bolaño pega o leitor pela mão e o leva, aos poucos, para o último círculo do inferno.
O
mal aparece na última parte através dos relatos da Segunda Guerra, de
cujas batalhas o escritor Archimboldi participara. Porém, o centro desse
inferno são os assassinatos de centenas de mulheres cometidos na cidade
de Santa Tereza, que na vida real corresponde a Ciudad Juárez. O caso
verídico já havia sido retratado por Bolaño em uma de suas crônicas
reunidas em Entre paréntesis (não publicado no Brasil ainda), onde
consta também uma entrevista concedida à revista Playboy. Perguntado
sobre como deveria ser o inferno, ele citou Ciudad Juárez, “nossa
maldição e nosso espelho, o espelho sem sossego de nossas frustrações”.
Nesse pequeno cosmo, portanto, o autor quis mostrar como o ser humano
pode destruir o mundo todo, seja agora ou no longínquo ano de 2666.
A
monumental obra do escritor chileno, misto de metaliteratura, romance
policial e ensaio, já é um dos romances capitais das letras
latino-americanas, ao lado de Jogo da amarelinha, de Julio Cortázar, Cem anos de solidão, de Gabriel García Marquez e Sobre heróis e tumbas, de Ernesto Sábato,
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