Aplausos para Ray Bradbury


Autor de Fahrenheit 451, Crônicas Marcianas e mais uma porção de coletâneas de contos, Ray Bradbury é um dos meus escritores preferidos e já apareceu algumas vezes aqui no blog. Hoje ele faz 90 anos, mas quem ganha o presente são vocês, leitores. Leiam a seguir o conto "As fruteiras do fundo da fruteira":

William Acton pôs-se de pé. O relógio da prateleira marcava meia-noite.

Olhou para seus dedos e olhou para o salão à sua volta e olhou para o homem caído no chão. William Acton, cujos dedos haviam acionado teclas de máquinas de escrever, fei­to amor e fritado ovos com presunto para o café da manhã, tinha assassinado um homem com esses mesmos dez dedos.

Ele nunca se havia considerado um escultor, mas nesse momento, olhando por entre suas mãos para o corpo esten­dido no soalho de madeira encerada, percebeu que, escul­pindo a argila humana com pressões, modelagens e torções, havia agarrado o homem chamado Donald Huxley e modi­ficado sua aparência, o próprio aspecto de seu corpo.

Com uma torção dos dedos, havia removido o brilho absorvente dos olhos cinzentos de Huxley, substituindo-o pela opacidade cega de olhos fixos em suas órbitas. Os lá­bios, sempre rosados e sensuais, estavam separados, mostran­do os dentes eqüinos, os incisivos amarelos, os caninos sujos de nicotina, os molares obturados de ouro. O nariz, também rosado, estava agora pálido, descorado e manchado, como as orelhas. As mãos de Huxley, estendidas no chão, estavam abertas, pela primeira vez em sua existência, suplicando em vez de exigir.

Era, realmente, uma concepção artística. No geral, a modificação havia sido favorável a Huxley. A morte o transformara em um homem mais acessível. Agora, podia-se falar com ele com a certeza de que seria obrigado a ouvir.

William Acton contemplou seus dedos.

Estava feito. Ele não podia voltar atrás. Alguém teria ouvido? Apurou os ouvidos. Lá fora, os ruídos normais do tráfego continuavam. Ninguém estava batendo, não havia ombros arrebentando a porta e nem vozes pedindo para en­trar. O assassínio, o ato de esculpir a argila quente e transformá-la em uma obra fria, estava consumado, e ninguém sabia.

E agora? O relógio marcava meia-noite. Seu primeiro impulso, numa explosão, empurrou-o histericamente para a porta. Depressa, sair, correr, não voltar nunca, tomar um trem, chamar um táxi, fugir, escapar, andar, trotar, voar, mas ir embora dali imediatamente!

Suas mãos passaram em frente a seus olhos, flutuando, virando-se.

As fez girar lenta e deliberadamente; pareciam aéreas e leves. Por que as olhava daquele modo? perguntou a si mes­mo. Haveria nelas algo tão interessante que agora, depois de conseguir controlar-se, era preciso parar e examiná-las linha por linha?

Eram mãos comuns. Não eram grossas e nem finas, nem grandes nem pequenas, nem peludas nem glabras, nem manicuradas e nem sujas, nem macias e nem calejadas, nem enrugadas e nem lisas; não eram nem de longe mãos assas­sinas, mas também não eram inocentes. Parecia contemplá-las como se fossem verdadeiros milagres.

Não estava interessado nas mãos enquanto mãos, nem nos dedos enquanto dedos. No átimo de tempo que se se­guiu ao ato de violência, só encontrou interesse nas pontas de seus dedos.

O relógio funcionava sobre a prateleira.

Ajoelhou-se ao lado do corpo de Huxley, pegou um lenço no bolso do morto e começou a esfregar-lhe metodicamente o pescoço. Limpou-o e friccionou-o, esfregou o rosto e a nuca com uma energia feroz. Levantou-se.

Olhou para o pescoço. Olhou para o soalho encerado. Abaixou-se lentamente e espanou alguns pontos do soalho com o lenço, depois contraiu o rosto e passou a esfregar o chão; primeiro, perto da cabeça do cadáver, e depois perto dos braços. Então, poliu o chão por toda a volta do corpo. Poliu-o até a um metro do corpo por todos os lados. Depois, até a dois metros do corpo em todas as direções. Depois, até a três metros do corpo por toda a volta. Depois...

Parou.

Houve um momento em que viu a casa inteira, as pa­redes cobertas de espelhos, as portas entalhadas, os móveis esplêndidos. Então, como se ouvisse a repetição de palavra por palavra, escutou o que Huxley e ele próprio haviam dito uma hora antes.

Dedo na campainha de Huxley. A porta sendo aberta.

Oh! — disse Huxley, surpreso. — É você, Acton.

Onde está minha mulher, Huxley?

— Você acha que eu iria lhe dizer? Não fique parado aí, como um idiota. Se quer conversar a sério, entre. Por aqui, por essa porta. Aqui. Na biblioteca.

Acton havia tocado na porta da biblioteca.

Aceita uma bebida?

— Aceito. Não posso acreditar que Lily tenha ido em­bora, que...

— Há uma garrafa de Borgonha, Acton. Pode pegá-la naquele armário?

Sim, pegá-la. Segurá-la. Tocá-la. Pegou a garrafa.

Tenho umas primeiras edições interessantes, Acton. Sinta só esta encadernação. Sinta-a.

Eu não vim ver seus livros, eu...

Ele havia tocado nos livros e na mesa da biblioteca, assim como na garrafa de Borgonha e nos copos.

Agora, agachado no chão ao lado do corpo frio de Huxley, com o lenço nas mãos, sem se mexer, passou os olhos pela casa, pelas paredes, pelos móveis. Arregalou os olhos, abriu a boca, fulminado pelo que compreendeu e pelo que viu. Fechou os olhos, deixou pender a cabeça, amarfanhou o lenço nas mãos, formando uma bola. Mordeu os lábios e conseguiu controlar-se.

As impressões digitais estavam em toda parte, em toda parte!

— Pode pegar o Borgonha, Acton? A garrafa de Borgonha, hein? Com seus dedos, hein? Estou muito cansado, você entende.

Um par de luvas.

Antes de mais nada, antes de limpar outra área, preci­sava encontrar um par de luvas, ou corria o risco de redis­tribuir sem querer sua identidade por um lugar que já esti­vesse limpo.

Pôs as mãos nos bolsos. Atravessou o salão até o cabide junto à porta. O sobretudo de Huxley. Esvaziou os bolsos do sobretudo.

Nada de luvas.

Com as mãos novamente nos bolsos, subiu as escadas, movendo-se com uma rapidez contida, sem se permitir nenhuma agitação, nenhum descontrole. Havia cometido o erro

inicial de não usar luvas (se bem que, afinal, não tivesse planejado um assassínio, e seu subconsciente, que poderia saber de antemão do crime, não tivesse sequer suspeitado que poderia precisar de luvas antes do final da noite), e agora estava pagando por seu pecado de omissão. Em algum lugar da casa devia haver pelo menos um par de luvas. Pre­cisava andar depressa; havia a possibilidade de que alguém viesse visitar Huxley, mesmo àquela hora. Amigos ricos que chegavam ou saíam bêbados da casa, rindo, falando alto, indo e vindo sem a menor cerimônia. Ele tinha tempo até, no máximo, seis da manhã, quando os amigos de Huxley viriam pegá-lo para ir ao aeroporto e partir para a Cidade do México...

Acton percorreu às pressas o andar de cima, abrindo gavetas, usando o lenço para não deixar impressões. Reme­xeu setenta ou oitenta gavetas em seis quartos, deixando-as, por assim dizer, com as línguas de fora, e abrindo novas ga­vetas. Sentia-se nu, incapaz de fazer qualquer coisa antes de encontrar luvas. Podia limpar a casa toda com o lenço, es­fregando todos os pontos onde houvesse a possibilidade de ter deixado impressões digitais, e esbarrar acidentalmente em uma parede qualquer, selando seu destino com um mi­croscópico símbolo concêntrico! Era o mesmo que estampar sua aprovação ao homicídio! Como os selos de cera dos tem­pos antigos, quando abria-se um pergaminho, floreava-se a escrita com pena e tinta, espalhava-se areia para secar a tinta e usava-se o anel de sinete para marcar o lacre vermelho ainda quente. O mesmo aconteceria se deixasse uma única impressão digital que fosse na cena do crime! Sua aprovação do crime, porém, não ia ao ponto de deixar a marca de seu selo.

Mais gavetas! Calma, curiosidade e método, pensou.

No fundo da octogésima quinta gaveta encontrou luvas.

— Meu Deus, meu Deus! — Apoiou-se na cômoda, respirando fundo. Vestiu as luvas, esticou-as, flexionou os dedos satisfeito e abotoou-as nos pulsos. Eram macias, cin­zentas, grossas, invioláveis. Agora, podia fazer qualquer coisa com as mãos, sem deixar rastros. Fez uma careta no espelho do banheiro, chupando os dentes.

— Não! — gritou Huxley.

Que plano malévolo!

Huxley havia caído no chão de propósito! Que sujeito esperto! Huxley caíra no soalho de madeira, com Acton atrás dele. Rolaram, brigaram e se agarraram no chão, es­tampando mil vezes suas impressões digitais! Huxley escor­regou um pouco para longe, e Acton se arrastou atrás dele para pôr as mãos em seu pescoço e apertar até que a vida escapasse como pasta de uma bisnaga!

Enluvado, William Acton voltou para o salão e se ajoe­lhou no chão, dedicando-se laboriosamente à tarefa de esfre­gar cada centímetro de soalho infestado. Centímetro por centímetro, esfregou-o até quase poder ver nele o reflexo de seu rosto concentrado e suado. Chegou então à mesa e esfre­gou as pernas, subindo e passando pelas bordas até chegar ao tampo. Alcançou uma fruteira com frutas de cera, poliu as filigranas de prata, esfregou as frutas uma por uma, com exceção das que estavam no fundo.

Tenho certeza de que não toquei nestas.

Após esfregar a mesa, chegou a um quadro pendurado acima dela.

Sei que não toquei nele. Ficou olhando para o quadro.

Examinou as portas do salão. Quais eram as portas que tinha usado naquela noite? Não se lembrava. Precisava polir todas, então. Começou pelas maçanetas, deixou todas bri­lhando, e depois esfregou as portas de cima a baixo, sem correr riscos. Depois foi de móvel a móvel do salão e limpou os braços das cadeiras.

— A cadeira em que você está sentado, Acton, é uma peça Luís XIV. Sinta a textura do material — disse Huxley.

— Não vim aqui para falar de mobília, Huxley! Vim para discutir sobre Lily!

— Ora, deixe disso, ela não significa tanto assim para você. Ela não o ama, você sabe disso. Ela me disse que parte comigo amanhã para a Cidade do México.

— Você e seu dinheiro, e seus malditos móveis!

— São belos móveis, Acton. Comporte-se como um bom hóspede e sinta só o estofamento.

Impressões digitais podem ser encontradas em tecidos.

Huxley! — William Acton dirigiu-se ao corpo. — Você adivinhou que eu iria matá-lo? Seu subconsciente des­confiou, como o meu subconsciente suspeitava? E seu sub­consciente lhe disse para fazer-me andar pela casa pegando, tocando, manipulando livros, pratos, portas, cadeiras? Será que você era tão esperto e tão calculista assim?

Esfregou secamente as cadeiras com o lenço amarfanhado. E então lembrou-se do corpo; não tinha limpado o corpo. Foi até ele e virou-o para um lado e depois para o outro, e esfregou toda a sua superfície. Chegou até a polir os sapa­tos, sem cobrar nada.

Enquanto passava o lenço nos sapatos, surgiu um ligeiro tremor de inquietação em seu rosto, e ao fim de um instante levantou-se e foi até a mesa.

Pegou e esfregou as frutas de cera do fundo da fruteira.

Melhorou — disse, e voltou para o corpo.

Mas enquanto se dedicava ao corpo suas pálpebras tre­miam, seu maxilar se movia de um lado para o outro e ele resmungava, até decidir-se a se erguer e voltar até a mesa.

Esfregou a moldura do quadro.

Enquanto limpava a moldura, descobriu...

A parede.

Isto — disse — é uma bobagem.

Oh! gritou Huxley, desviando-se. Empurrou Acton durante a luta. Acton caiu e levantou-se tocando a parede, e pulou novamente sobre Huxley. Estrangulou Hux­ley. Huxley morreu.

Acton deu as costas para a parede, decidido, com equi­líbrio e firmeza. As palavras e as ações violentas se apagaram em sua lembrança; escondeu-as. Olhou para as quatro pa­redes.

É ridículo! — disse.

Com o canto dos olhos, viu alguma coisa em uma das paredes.

Eu me recuso a dar atenção a isto — disse para distrair-se. — Vamos para a outra sala! Vou ser metódico. Vejamos: ao todo, estivemos no salão, na biblioteca, nesta sala, na sala de jantar e na cozinha.

Havia uma pequena mancha na parede atrás dele.

Ou não havia?

Voltou-se enraivecido. — Está bem, está bem, só para garantir. — Aproximou-se da parede e não conseguiu mais ver mancha nenhuma. Ou, sim, uma manchinha, bem... ali. Esfregou-a. De qualquer modo, não era uma impressão digi­tal. Terminou e, com a mão enluvada encostada na parede, contemplou toda a sua extensão, prolongando-se para a di­reita e para a esquerda, descendo até seus pés e subindo mais alto que sua cabeça. Disse baixinho: — Não! — Olhou para cima e para baixo, para os dois lados e disse: — Já é demais. — Quantos metros quadrados? — Não quero nem saber — disse. Entretanto, sem que seus olhos vissem, os dedos enluvados começaram a se mover ritmadamente na parede, como se quisesse esfregá-la.

Olhou para sua mão pousada no papel de parede. Olhou por cima do ombro para a outra sala. — Preciso ir lá e esfregar o essencial — disse para si mesmo, mas a mão continuou, como se sustentasse a parede ou seu corpo. Seu rosto contraiu-se.

Sem uma palavra, começou a esfregar a parede, para cima e para baixo, para os dois lados, para cima e para baixo, tão alto quanto podia alcançar e tão baixo quanto conseguia se curvar.

É ridículo, meu Deus, é ridículo!

Mas é preciso ter certeza, disse-lhe seu pensamento.

É, é preciso ter certeza — ele respondeu. Terminou uma parede, e então...

— Chegou a outra parede.

Que horas serão?

Olhou para o relógio da prateleira. Passara-se uma hora.

Era uma e cinco.

A campainha tocou.

Acton ficou imóvel, olhando para a porta, para o reló­gio, a porta, o relógio.

Bateram com força na porta.

Passou-se um longo momento. Acton nem respirava. Sem ar renovado no corpo, começou a desmaiar, a oscilar; em sua cabeça, rugia o silêncio de ondas frias quebrando-se contra rochedos maciços.

— Ó de casa! — gritou uma voz pastosa. — Eu sei que você está em casa, Huxley! Abra a porta, seu cretino! Sou eu, Billy, bêbado como um gambá, Huxley, mais bêbado que dois gambás, meu velho!

— Vá embora — murmurou Acton sem produzir um som, grudado à parede.

— Huxley, eu sei que você está aí, estou ouvindo você respirar! — insistiu a voz pastosa.

— É, estou aqui — murmurou Acton, sentindo-se esti­cado ao comprido no chão, desengonçado, frio e imóvel. — Estou, sim.

— Que diabo! — disse a voz, desaparecendo no ne­voeiro. Os passos se arrastaram para longe. — Que diabo...

Acton ficou por muito tempo parado, sentindo o cora­ção vermelho bater por dentro de seus olhos fechados, no interior da cabeça. Quando afinal abriu os olhos, viu a outra parede bem à sua frente, e finalmente reuniu coragem para falar. — É bobagem — disse. — Esta parede está limpa. Não vou nem começar. Preciso andar depressa. Depressa. Tenho pouco tempo. Só algumas horas antes que esses ami­gos idiotas comecem a chegar! — E afastou-se.

Com o canto dos olhos, viu as pequenas teias. Quando virava as costas, as aranhas saíam dos frisos de madeira do teto e teciam delicadamente suas pequenas teias, frágeis e quase invisíveis. Não na parede à sua esquerda, que tinha acabado de limpar, mas nas três restantes. Sempre que as fitava diretamente, as aranhas retornavam para os frisos, mas recomeçavam a fiar assim que afastava os olhos. — Essas paredes estão limpas — insistiu, quase gritando. — Não vou nem tocar nelas!

Dirigiu-se a uma escrivaninha em que Huxley se sentara no começo da noite. Abriu uma gaveta e encontrou o que estava procurando. Uma pequena lente de aumento, que Huxley às vezes usava para ler. Pegou a lente e examinou a parede, inquieto.

Impressões digitais.

— Mas não são minhas! — riu instavelmente. — Não fui eu quem as pôs aí! Tenho certeza de que não fui eu! Foi um empregado, o mordomo, talvez a arrumadeira!

A parede estava coberta de impressões.

— Esta aqui, por exemplo — disse. — É alongada e mais fina na ponta. É de mulher, eu seria capaz de apostar.

— Seria mesmo?

— Seria!

— Tem certeza?

— Tenho!

— Tem mesmo?

— Bem... tenho!

— Absoluta?

— Tenho! Absoluta, sim!

— Limpe de qualquer modo, por que não?

— Pronto, por Deus!

— Menos uma maldita mancha, hein, Acton?

— E esta mancha aqui — disse Acton, zombeteiro — é a impressão digital de um homem gordo.

— Tem certeza?

— Não vamos começar tudo de novo! — atalhou, e limpou-a. Tirou uma das luvas e contemplou sua mão trêmula sob a luz forte.

Isso não prova nada!

Oh, está bem! — Com raiva, esfregou toda a parede com as mãos enluvadas, suando, gemendo, xingando, curvando-se, pondo-se nas pontas dos pés e ficando com o rosto cada vez mais vermelho.

Tirou o sobretudo e o colocou sobre uma cadeira.

— Duas horas — disse, terminando a parede e olhando o relógio.

Tornou a andar até a fruteira, retirou as frutas de cera, poliu as frutas do fundo e colocou-as de volta, esfregando depois a moldura do quadro.

Olhou para cima e viu o lustre.

Seus dedos tremeram.

A boca se abriu, a língua percorreu os lábios, olhou para o lustre, desviou os olhos, olhou de novo para o lustre, depois para o corpo de Huxley e de volta para o lustre de cristal com seus longos pingentes de prismas irisados.

Pegou uma cadeira e arrastou-a até sob o lustre, pôs um pé no assento, retirou o pé e, rindo, atirou violentamente a cadeira a um canto. Saiu apressadamente do salão, deixando uma parede por limpar.

Na sala de jantar, deparou-se com uma mesa.

— Quero lhe mostrar meus talheres do século XVI, Acton — disse Huxley. Oh, aquela despretensiosa e hipnó­tica voz!

— Não tenho tempo — disse Acton. — Preciso ver Lily...

— Bobagem, veja estes talheres, que trabalho precioso. Acton parou junto à mesa, onde os faqueiros estavam expostos, tornando a ouvir a voz de Huxley e rememorando todos os gestos e movimentos.

Depois, esfregou os garfos e as facas, retirou todas as bandejas e pratos de uma cerâmica especial da parede...

— Esta aqui é uma linda peça feita por Gertrude e Otto Natzler, Aoton. Conhece o trabalho deles?

— É realmente linda.

— Pode pegar. Veja como a travessa é fina e delicada, torneada à mão, fina como uma casca de ovo, é incrível. E o verniz tem um brilho fantástico, vulcânico. Pode pegar, meu caro, não há problema.

Pode pegar. Não faça cerimônia. Pegue!

Acton soltou um soluço entrecortado. Atirou a travessa na parede. Ela se despedaçou e espalhou-se, em estilhaços, por todo o chão.

No momento seguinte, ele já estava ajoelhado. Precisa­va achar todos os pedaços, todos os fragmentos. Idiota, idiota, idiota!, gritava para si mesmo, balançando a cabeça, abrindo e fechando os olhos e abaixando-se para entrar sob a mesa. Encontre todos os pedacinhos, seu idiota, não pode deixar nem um fragmento. Idiota, idiota! Recolheu os esti­lhaços. Estão todos aqui? Colocou-os sobre a mesa e con­templou-os. Olhou novamente debaixo da mesa, sob a cadeira e sob as mesinhas, encontrou mais um pedaço à luz de um fósforo e começou a polir todos os pequenos fragmentos, como se fossem pedras preciosas, e arrumou-os caprichosa­mente sobre a mesa reluzente, de tão polida.

— É uma porcelana linda, Acton. Pode pegar, vamos, pegue-a!

Tirou a toalha da mesa, limpou-a e esfregou as cadeiras, as mesinhas, as maçanetas, as vidraças, os caixilhos e as cor­tinas, esfregou o chão, e chegou à cozinha, ofegante, respi­rando com violência. Tirou o paletó, ajustou as luvas, esfre­gou os cromados brilhantes...

— Quero lhe mostrar minha casa, Acton — dissera Huxley. — Venha...

E limpou todos os utensílios, as torneiras e as travessas de prata, pois agora já não se lembrava mais em que coisas havia tocado. Huxley e ele haviam passado algum tempo ali na cozinha, Huxley orgulhoso de sua aparelhagem culinária, ocultando seu nervosismo ante a presença de um assassino potencial, querendo talvez ficar perto das facas, caso elas se tornassem necessárias. Ficaram lá algum tempo, tocando nisso e naquilo, em mais alguma coisa (não era possível lembrar em quê, em quais coisas ou em quantas). Acabou a cozinha e voltou através do vestíbulo para o salão onde Huxley jazia.

Gritou.

Tinha-se esquecido de esfregar a quarta parede do salão! E, enquanto esteve fora, as pequenas aranhas proliferaram e se espalharam, partindo da quarta parede e tomando as pa­redes que estavam limpas, sujando-as de novo! No teto, no lustre, nos cantos, no chão, milhões de pequenas teias emara­nhadas haviam sido tecidas, e ondularam ao sabor do seu grito! Teias pequeninas, ironicamente nunca maiores do que... um dedo!

Enquanto olhava, teias cobriram a moldura do quadro, a fruteira, o corpo, o chão. Impressões digitais se espalharam sobre a espátula, abriram gavetas, tocaram no tampo da mesa, tocaram, tocaram em tudo, em toda parte.

Esfregou o chão em desespero. Rolou o corpo e chorou sobre ele enquanto o esfregava, levantou-se e poliu as frutas do fundo da fruteira. Depois, trouxe uma cadeira para baixo do lustre, subiu no assento e esfregou cada pingente do lus­tre, sacudindo-o como um pandeiro, fazendo-o balançar-se no ar como um grande sino. Então, pulou da cadeira e limpou as maçanetas e subiu em outras cadeiras e esfregou as paredes cada vez mais alto e correu para a cozinha e pegou uma vassoura e limpou as teias que pendiam do teto e esfregou as frutas do fundo da fruteira e o corpo e as maçanetas e as pratarias, e esbarrou no corrimão do vestíbulo e seguiu as escadas até o andar de cima.

Três horas! Em toda parte, com uma intensidade mecâ­nica e feroz, relógios tiquetaqueavam! Havia doze cômodos no térreo e oito no andar de cima. Calculou a área que pre­cisava cobrir e o tempo necessário. Cem cadeiras, seis sofás, vinte e sete mesas, seis rádios. Por baixo, por cima e por trás. Desencostava com força os móveis das paredes e, solu­çando, esfregava-os, tirando a poeira de anos. Seguiu trôpego o corrimão, subindo as escadas, passando o lenço, esfregando, apagando, limpando, polindo, porque se deixasse uma única impressão digital ela se reproduziria, criando um milhão de impressões. Todo o trabalho precisaria ser refeito, e já eram quatro horas! Seus braços doíam e os olhos estavam inchados e fixos. Ele se movia aos trancos, sobre pernas estranhas, com a cabeça baixa, os braços se movendo, esfregando e limpando quarto por quarto, armário por armário...

Foi encontrado às seis e meia da manhã.

No sótão.

A casa inteira estava reluzente, polida. Vasos cintilavam como estrelas de vidro. As cadeiras brilhavam como se a cera fosse nova. Bronzes, alumínios e cobres faiscavam. O soalho parecia um espelho. Os corrimões reluziam.

Tudo brilhava. Tudo cintilava, tudo reluzia!

Encontraram-no no sótão, polindo velhos baús, velhos quadros, velhas cadeiras, velhos brinquedos e caixas de músi­ca, vasos, talheres, cavalos de brinquedo e moedas empoeiradas do tempo da Guerra Civil. Já tinha limpado meio sótão quando o policial chegou por trás dele com uma arma na mão.

— Pronto!

Ao sair da casa, Acton esfregou a maçaneta da porta da frente com o lenço e bateu-a com um gesto triunfal!

Comentários

Mirella disse…
*clap, clap, clap, clap, clap* Opa... Blog um pouquinho diferente!
Cassionei Petry disse…
É o mesmo, só estou passando a sacolinha...
que loucura!
estou até tonta..

Mensagens populares