Aquele abraço

Texto da próxima quarta-feira na minha coluna no jornal

Como sou uma “traça”, devoro os livros de cabo e rabo, sem esquecer a capa. Criação do experiente Victor Burton, a capa de Eu vos abraço, milhões (Companhia das Letras, 256 páginas), novo romance do não menos experiente Moacyr Scliar, me serviu de ponto de partida para a compreensão da história. Num primeiro momento, a ilustração de um trabalhador com os braços cruzados estampa uma manchete de um jornal comunista. Outra ilustração traz a estátua do Cristo Redentor em construção, já com os “braços abertos sobre a Guanabara”. Por último, e com maior destaque, soldados sobre um caminhão são recebidos pelo povo com os braços abertos, da mesma forma que o Cristo. Política, religião e as massas são os eixos temáticos do romance, e por aí segui minha leitura.

O título vem de um verso do poeta Friedrich Schiller, Ode à alegria, presente na Nona Sinfonia de Beethoven, uma das obras máximas do Romantismo alemão. O Romantismo foi um período cultural que tinha como características a individualidade e o idealismo. Curiosamente, apesar do pronome pessoal “eu”, o verso de Schiller é usado sob uma perspectiva comunista, ligada ao coletivo que minimiza o indivíduo. Aliás, algumas traduções do poema optam por “abracem-se” em vez de “eu vos abraço”, o que combinaria melhor com o comunismo. Também é uma referência à religiosidade, representada pela pose do Cristo Redentor. “Abraçar os milhões de seres humanos que compunham as massas, esse deveria ser nosso ideal”, diz um dos personagens do romance.

No final dos anos 20, Valdo é um jovem do interior do Rio Grande do Sul que vive com os pais numa estância. Depois de conhecer Geninho, influencia-se pelas ideias do amigo, que empresta para ele livros comunistas. Vendo seu pai sendo ofendido pelo patrão, o coronel Nicácio - o latifundiário agredindo o trabalhador - toma consciência de que deveria fazer algo. Resolve entrar para o Partido, mas antes precisa ir ao Rio de janeiro receber ensinamentos do maior líder comunista naquele momento, Astrojildo Pereira, um dos tantos personagens que realmente existiram e que permeiam a narrativa.

Na Capital Federal, enquanto espera uma oportunidade para conhecer o líder que está fora do país, trabalha na construção do Cristo Redentor, o que vai de encontro ao seu ateísmo. Percebe também que as ideias comunistas serão difíceis de serem realizadas com uma população tão alienada pela religião, o ópio do povo segundo Marx. Devido a conflitos dentro do próprio Partido e por uma posição mais pragmática de vida, Valdo aos poucos vai se distanciando de seus ideais, mas o espectro volta a assombrá-lo nos anos 60, com o filho seguindo o caminho que o pai deixou de trilhar.

A história é contada por Valdo através de uma longa carta ao seu neto, que está nos EUA. Em outros livros, Scliar usou recurso parecido, como em Pra você eu conto, livro infanto-juvenil que narra uma história também sobre a utopia comunista. Outros temas recorrentes do escritor estão presentes, como a medicina e o judaísmo. Da mesma forma, o estilo inconfundível do autor é notório, com suas frases curtas e repletas de vocativos, apostos e inversões sintáticas, um atrativo para quem o lê pela primeira vez.

Apesar das referências a questões políticas e econômicas, como a quebra da Bolsa de Nova Iorque e a revolução de 30 que levou Getúlio Vargas ao poder, o romance aborda muito mais a fé, seja na religião ou em um partido político (as reuniões do Partido Comunista pareciam atos religiosos, com juramentos e confissões). Cada pessoa que segue um ou outro acaba perdendo sua individualidade, tornando-se apenas uma massa sem rosto no meio de milhões. Talvez por isso o comunismo não deu certo, pois, onde ele ocorreu, a maior parte da massa ficou ma miséria, vendo a minoria se beneficiar do poder. Na religião, por sua vez, como no comunismo, só algumas ovelhas do rebanho são privilegiadas pelo abraço “protetor” do seu pastor maior. Como já escreveu George Orwell, “todos são iguais, mas alguns parecem ser mais iguais do que os outros”.

Cassionei Niches Petry é professor. Como o personagem Valdo, flertou com o comunismo na adolescência, mas hoje, desiludido, é um “em-cima-do-muro” com relação à política. Quanto à religião, continua concordando com Karl Marx. Além da coluna “Traçando livros” escreve no seu blog: www.cassionei.blogspot.com.

Comentários

Bah..descobri que o teu blog..DEZ..abraços!!
Cassionei Petry disse…
Descobriu o que, Sônia?

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