O voo, o véu e a verdade

Jacob Peter Gowy, A Queda de Ícaro

“O velho Montag queria voar perto do Sol e agora que queimou as asas, pergunta por quê.” (Ray Bradbury, Fahrenheit 451)

O mito de Ícaro – a história do jovem que voou com um par de asas de cera que se derreteu ao chegar muito perto do sol, o que o levou à morte – é uma das tantas alegorias criadas pelo homem para mostrar que ele deve ter limites para chegar ao conhecimento. Devemos, no entanto, ir até as fronteiras e parar?

Em um ensaio do livro Mitos, emblemas e sinais, o historiador Carlo Ginzburg – que está hoje em Porto Alegre num evento chamado justamente Fronteiras do pensamento – escreve sobre os opostos alto e baixo, relacionados ao chamado conhecimento proibido. “É significativo”, escreve ele, “que digamos que algo é ‘elevado’ ou ‘superior’ – ou, inversamente, ‘baixo’ e ‘inferior’ – sem nos darmos conta do motivo por que aquilo a que atribuímos maior valor (a bondade, a força etc.) deva ser colocado no alto.” Nesse sentido, nas mitologias e religiões, os deuses estão sempre no alto, superiores, e nós, meras formiguinhas, seres inferiores, aqui embaixo.

Na Idade Média, o conhecimento esteve encastelado, literalmente, em mosteiros, cujas bibliotecas possuíam o acervo do que de mais importante havia sido escrito. Muitos desses paraísos do saber ficavam no alto das torres. Por isso o período foi denominado de Idade das Trevas, devido ao obscurantismo intelectual no qual vivia a população das classes baixas. Mais tarde, o homem comum passou a ter acesso ao saber. A Reforma Protestante, por exemplo, ajudada pela invenção da imprensa, possibilitou que qualquer pessoa pudesse ler e interpretar a Bíblia, fonte de conhecimento para os cristãos. “Voando” para os dias atuais, vemos que o saber se expande cada vez mais através da rede de computadores e os limites do conhecimento vão sumindo no horizonte. Ou não existem mais esses limites?

Pois apesar de todos esses voos já realizados rumo à luz do conhecimento, ainda há quem deseja nos cortar as asas. Para eles, o ser humano não pode querer ser Deus. Essas pessoas impõem barreiras às pesquisas como as das células-tronco ou da criação de vida artificial e não aceitam ser contestados com relação a seus dogmas. Devemos nos ater, dizem, a nossa insignificância e não tentar entender as coisas do “alto”. Pensamento mesquinho de quem quer ser dono de uma verdade e deseja que os demais a aceitem e, além disso, tenta encobrir as fontes que podem provar o contrário de seu pensamento. Quebrar essas barreiras é o que o super-homem proposto pelo filósofo Nietzsche deve fazer. Não há muro intransponível para quem pode voar.

Não estou dizendo que não devemos ter nenhum limite. A falta de limites para crianças e jovens, por exemplo, está criando seres que não respeitam seus pais, muito menos seus professores. Quem não respeita limites no trânsito causa acidentes. Até na alimentação temos que ter um limite para não prejudicarmos nosso organismo. Devemos, no entanto, deixar livres as fronteiras do conhecimento. Não deve haver limites para o saber, a experiência, a informação, a ciência, a filosofia, a cultura, a fantasia, as artes. Só assim buscamos a “aletheia” dos gregos, que segundo outro filósofo, Martin Heidegger, é o “desvelamento” ou “desencobrimento” do que está oculto, caindo, portanto, o véu que nos fecha os olhos para que possamos descobrir a verdade.

Comentários

Mirella disse…
Isso aí, psor.
É realmente !! Muito bom esse texto.

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