O voo, o véu e a verdade


Um ano traçando livros!

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“O velho Montag queria voar perto do Sol e, agora que queimou as asas, pergunta por quê.” (Ray Bradbury, Fahrenheit 451)

O mito de Ícaro – o jovem que voou com um par de asas de cera que se derreteu ao chegar perto do sol – é uma das alegorias criadas pelo homem para mostrar que temos limites para chegar ao conhecimento. Devemos seguir os ensinamentos do mito, indo até as fronteiras do saber e parar?

Em um ensaio do livro Mitos, emblemas e sinais, o historiador italiano Carlo Ginzburg escreve sobre os opostos alto e baixo, relacionados ao chamado conhecimento proibido. “É significativo que digamos que algo é ‘elevado’ ou ‘superior’ – ou, inversamente, ‘baixo’ e ‘inferior’ – sem nos darmos conta do motivo por que aquilo a que atribuímos maior valor (a bondade, a força etc.) deva ser colocado no alto.” Nesse sentido, nas mitologias e religiões, os deuses estão sempre num patamar superior, e nós, seres inferiores, criamos raízes aqui embaixo.

Na Idade Média, o conhecimento esteve encastelado em mosteiros cujas bibliotecas possuíam o acervo do que de mais importante havia sido escrito. O período foi denominado de “Idade das Trevas”, devido ao obscurantismo intelectual no qual vivia a população das classes baixas. Mais tarde, o homem comum passou a ter acesso ao saber. A Reforma Protestante ajudada pela invenção da imprensa possibilitou que qualquer pessoa pudesse ler e interpretar a Bíblia. Hoje, vemos que o saber se expande cada vez mais através da rede de computadores e os limites do conhecimento vão sumindo no horizonte. Ou não existem mais esses limites?

Pois apesar de todos esses voos já realizados rumo à luz do conhecimento, ainda há quem deseje nos cortar as asas. Para eles, o ser humano não pode querer ser um deus. Essas pessoas impõem barreiras às pesquisas como as das células-tronco ou da criação de vida artificial e não aceitam ser contestadas com relação a seus dogmas. Devemos nos ater, dizem, a nossa insignificância e não tentar entender as coisas do “alto”. Pensamento mesquinho de quem quer ser dono de uma verdade e deseja que os demais a aceitem e, além disso, tenta encobrir as fontes que podem provar o contrário de seu pensamento. Quebrar essas barreiras é o que o super-homem proposto pelo filósofo Nietzsche deve fazer. Não há muro intransponível para quem pode voar.

Não estou dizendo para não termos nenhum limite. A falta de limites para crianças e jovens está criando seres que não respeitam ninguém. Quem não respeita limites no trânsito causa acidentes. Até na alimentação temos que ter um limite para não prejudicarmos nosso organismo. Quero dizer que é preciso deixar livres as fronteiras do conhecimento. Não deve haver limites para o saber, a experiência, a informação, a ciência, a filosofia, a cultura, a fantasia, as artes. Só assim podemos buscar a verdade, chamada de “aletheia” pelos gregos, o que, segundo Martin Heidegger, é o “desvelamento” do que está oculto, deixando cair o véu que nos tapa os olhos.

Pois é isso que venho tentando há um ano, quando passei a ser colaborador fixo aqui neste espaço: buscar a verdade – se é que ela existe – através da literatura e, da mesma forma, compartilhar as descobertas com o leitor. É esse o sentido de continuar “traçando livros”.

Cassionei Niches Petry é professor e mestrando em Letras, com bolsa do CNPq. Há um ano escreve quinzenalmente sobre livros para o Mix e há quase onze mantém o blog Porém, ah, porém, cujo endereço eletrônico é cassionei.blogspot.com.

Comentários

Mirella disse…
Passando para fazer a leitura do dia.

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