O suicida e o computador, por Luis Fernando Verissimo
Sem autorização nenhuma, posto uma crônica do Luis Fernando Verissimo por aqui. Mas é dele mesmo, está no livro homônimo, editado pela L&PM em 1992.
Depois de fazer o laço da forca e colocar uma cadeira embaixo, o escritor sentou-se atrás da sua mesa de trabalho, ligou o computador e digitou: 
"No fundo, no fundo, os escritores passam o tempo 
todo redigindo a sua nota de suicida. Os que se suicidam mesmo são os 
que a terminam mais cedo." Levantou-se, subiu na cadeira sob a forca e 
colocou a forca no pescoço. Depois retirou a forca do pescoço, desceu da
 cadeira, voltou ao computador e apagou o segundo "no fundo". Ficava 
mais enxuto. Mais categórico. Releu a nota e achou que estava curta. 
Pensou um pouco, depois acrescentou: 
"Há os que se suicidam antes de escapar da terrível 
agonia de encontrar um final para a nota. O suicidio substitui o final. O
 suicídio é o final." Levantou-se, subiu na cadeira, colocou a forca no 
pescoço e ficou pensando. Lembrou-se de uma frase de Borges. Encaixa, 
pensou, retirando a corda do pescoço, descendo da cadeira e voltando ao 
computador. Digitou: 
"Borges disse que o escritor publica seus livros para
 livrar-se deles, senão passaria o resto da vida reescrevendo-os. O 
suicídio substitui a publicação. O suicídio é a publicação. No caso, o 
livro livra-se do escritor." Levantou-se, subiu na cadeira, mas desceu 
da cadeira antes de colocar a forca no pescoço. Lembrara-se de outra 
coisa. Voltou ao computador e, entre o penúltimo e o último parágrafo, 
inseriu: 
"Há escritores que escrevem um grande livro, ou uma 
grande nota de suicida, e depois nunca mais conseguem escrever outro. 
Atribuem a um bloqueio, ao medo do fracasso. Não é nada disso. É que 
escreveram a nota, mas esqueceram-se de se suicidar. Passam o resto da 
vida sabendo que faltou alguma coisa na sua obra e não sabendo o que é. 
Faltou o suicídio." Levantou-se, ficou olhando a tela do computador, 
depois sentou-se de novo. Digitou: 
"No fundo, no fundo, a agonia é saber quando se 
terminou. Há os que não sabem quando chegaram ao final da sua nota de 
suicida. Geralmente, são escritores de uma obra extensa. A crítica 
elogia sua prolixidade,
 a sua experimentação com formas diversas. Não sabe que ele não consegue
 é terminar a nota." Desta vez não se levantou. Ficou olhando para a 
tela, pensando. Depois acrescentou: 
"É claro que o computador agravou a agonia. Talvez 
uma nota de suicida definitiva só possa ser manuscrita ou datilografada à
 moda antiga, quando o medo de borrar o papel com correções e deixar uma
 impressão de desleixo para a posteridade leva o autor a ser preciso e sucinto. Tese: é impossível escrever uma nota de suicida num computador." 
Era isso? Ele releu o que tinha escrito. Apagou o 
segundo "no fundo". Era isso. Por via das dúvidas, guardou o texto na 
memória do computador. No dia seguinte o revisaria. 
E foi dormir.
Aqui, um curta baseado na crônica: 



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