No Traçando Livros de hoje, Marcia Tiburi
http://www.gaz.com.br/gazetadosul/noticia/386817-v_de_verdade/edicao:2013-01-09.html
V de Verdade
Dia desses, em um banco, não consegui provar que eu sou eu
mesmo. Minha assinatura já não é mais tão parecida com a que consta na carteira
de identidade. O atendente dizia que a atual tem alguns riscos a mais. E tem
realmente. Esta traça que vos escreve já não possui os mesmos traços de quinze
anos atrás. A mão já não segura a caneta da mesma forma, talvez por usar mais
as teclas do computador. Tracei outros caminhos na minha vida e isso está
estampado nos traços da minha assinatura. O documento também está gasto, o
plástico se rasgando, carcomido. E a foto revela um rosto um pouco diferente,
os traços do jovem cedendo lugar a traços mais envelhecidos. Mas era meu esse
rosto.
Enquanto aguardava ser atendido, lia o mais recente romance
de Marcia Tiburi, cujo título, Era meu esse rosto (Record, 208
páginas), tinha direta relação com aquele momento. E depois, esperando o
atendente levar os documentos para seu superior conferir, me identifiquei com a
criança da capa, que põe a mão no rosto e vê o seu reflexo na água, parecendo
desconsolada, como se questionasse “será que esse sou eu mesmo?” As reflexões
da escritora e filósofa reúnem uma prosa poética e filosófica, emoção e razão
traçando dúvidas sobre quem somos.
A consoante V é uma das chaves para compreender a narrativa.
A história parte de um ponto, o protagonista, e se divide em duas partes, como
os traços que formam a letra V. No Vai e Vem do tempo, entre a infância e a
idade adulta do protagonista, há uma Viagem interior, tanto geográfica quanto
sentimental, em que ele rememora seu passado, quando tinha sete anos, na cidade
gaúcha denominada no enredo apenas com a inicial V. Há aqui a figura forte de
seu aVô, “tonto da razão compreensiva das coisas”, representando a Velhice,
fechando-se assim as três fases da Vida. Em alguns momentos é a infância do nonno que aparece, confundindo-se com a
do próprio narrador.
Entre parênteses, para marcar o outro Vértice do tempo, o
narrador, já adulto e trabalhando como fotógrafo, conta sobre sua Visita a uma
cidade italiana também chamada V, cuja descrição nos faz pensar que é a
turística Veneza. “Entro na cidade de brinquedo fotografando o píer sobre o
qual caminho cercado de botes e gôndolas, gente com malas e máquinas de
fotografar como eu.” Vai buscar as origens da sua família, a Verdade sobre seu
aVô e, por conseguinte, sobre ele mesmo.
Além da Vida que precisa ser compreendida, a morte é uma
presença constante em Era meu esse rosto.
O menino perde tios, avós, pai, mãe, irmãos, “sei desde sempre que é a
morte que se repete”. As duas linhas que formam o V são Vistas agora ao
contrário, são dois pontos que convergem para um só. “A vida é gêmea da morte”,
diz o avô.
A prosa de Marcia Tiburi é imagética. Não por acaso o
protagonista é um fotógrafo, que procura nas imagens as respostas para suas
dúvidas existenciais. “Procurei fotografias, encontrei imagens fossilizadas de
um passado que ficou sem narrativa”. O rosto que Vê, a Verdade que encontra, parece
com o de um brinquedo abandonado por suas irmãs, uma “boneca de louça de roupas
carcomidas pelas traças e já sem olhos.”
Cassionei Niches Petry é mestrando em Letras e escritor, autor de Arranhões
e outras feridas (Editora Multifoco). Escreve
quinzenalmente para o Mix e mantém um blog, cassionei.blogspot.com. Promete
atualizar seus documentos para provar que ele é ele mesmo.
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