Ian McEwan na minha coluna Traçando Livros de hoje
Justiça dos homens X justiça dos deuses
Não é o melhor Ian McEwan, mas ainda assim é um
romance de Ian McEwan. Se não tem a força de Reparação ou Amsterdam, A
balada de Adam Henry (Companhia das Letras, 200 páginas, tradução de Jorio
Dauster) é uma obra que não se deve desprezar. Traz uma boa história, apesar da
falta de inventividade linguística, e uma dose de dilemas morais a serem
discutidos.
A protagonista é Fiona
Maye, juíza britânica responsável por decidir espinhosos casos familiares no
Tribunal Superior, como a separação de corpo de gêmeos siameses para que um
deles sobreviva ou a educação de uma criança cujos pais separados têm opiniões
religiosas distintas. “A Vara de Família fervilhava com estranhos conflitos,
argumentos especiosos, meias verdades íntimas, acusações exóticas. E, como em
todos os ramos do direito, pequenas peculiaridades circunstanciais precisavam
ser assimiladas rapidamente. Na semana anterior ela ouvira as alegações finais
de um casal de judeus, com graus diversos de ortodoxia, que estava se
divorciando e disputava a educação das filhas.”
Se soluciona os
problemas de outras pessoas, não consegue resolver os seus, pois está vivendo
uma crise no casamento. Manda o marido embora ao saber que ele buscava um
relacionamento com uma mulher mais nova. “Ela tinha o poder de afastar uma
criança de um pai insensível, e às vezes o fazia. Mas afastar a si mesma de um
marido insensível? Quando se sentia frágil e solitária? Onde estava o juiz que
iria protegê-la?”
Nada a desmotiva,
pois segue firme nos julgamentos e se dedica à elaboração da escrita das
sentenças. Entretanto, um caso específico a abala emocionalmente. Adam Henry,
um rapaz prestes a completar 18 anos, sofre de leucemia e necessita de
transfusão de sangue para sobreviver. A família, membros das Testemunhas de
Jeová, não dá a devida autorização, pois implica num descumprimento de um dos
dogmas religiosos oriundos de uma interpretação da Bíblia. O jovem tampouco
está disposto a contrariar sua religião, pois foi educado desde criança a acatar
as suas leis. O hospital apela, então, para a justiça dos homens. Fiona, antes
da decisão final, resolve conversar com o rapaz. O diálogo entre eles, envolvendo
questões de fé e reflexões sobre a arte, mais precisamente a música e a poesia,
é o ponto alto do romance. A juíza toma a decisão, mas a aproximação demasiada
entre os dois pode ter causado consequências indesejáveis.
Coincidência ou não
(mais provável que não), estava lendo paralelamente alguns excertos da obra do
jornalista Christopher Hitchens, que dedicou seu livro mais importante, Deus não é grande, ao amigo McEwan. O
famoso polemista antirreligioso comentou em um dos capítulos que a religião pode
ser perigosa para a saúde e exemplificou muitos casos em que os dogmas
religiosos provocaram a morte de milhares de pessoas. “Quem recorre a uma
justificação celestial para explicar a crueldade ficará manchado pelo mal e,
além disso, representa um perigo ainda maior.” Uma reflexão que McEwan
assinaria embaixo.
Cassionei
Niches Petry é professor e escritor. Autor de Arranhões
e outras feridas (Editora Multifoco) e Os óculos de Paula (Editora Autoral). Escreve regularmente para o
Mix e mantém um blog, cassionei.blogspot.com
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