Café e literatura no "Traçando livros" de hoje
O prazer do café e
da literatura
Há escritores que necessitam de cigarros para escrever, como Alejandro
Zambra e Julio Ramón Ribeyro, que apareceram na última coluna. Há os que não
dispensam a bebida alcoólica, como o Bukowski. Paul Auster é adepto do chá. Henry David Thoreau acreditava que a única bebida digna para ele era a água. Eu necessito de café: não muito forte, mas
jamais fraco, xícara grande, com duas ou três colheres de açúcar, podendo ser coado na
hora ou requentado, sem muita frescura. E quando digo necessito, na verdade
quero dizer que preciso, que é imprescindível, que não vivo sem meu café. Sou
um adicto (termo técnico, mas que serve como eufemismo para viciado), sou
dependente do café. Por isso, e já que escrevi sobre o cigarro no último
Traçando livros, hoje o tributo é à “bebida negra do Diabo”, como a chamavam os
cristãos de Roma.
A lista de escritores (de ficção ou de filosofia) que preferem café é
enorme. Consta que Proust tomava muitas xícaras. Julio Cortázar também não o
dispensava e em muitos dos seus poemas ele aparece, assim como é presença
marcante no romance O jogo da amarelinha
(“Isso foi na madrugada de segunda-feira, depois de terem passado juntos a
tarde e a noite de domingo, lendo, escutando discos, levantando-se alternadamente
para aquecer o café ou fazer mate.” “...e então o cheiro do café, ah!, o cheiro
maravilhoso do café...”).
Voltaire,
o recordista entre os escritores na quantidade de cafezinhos ingeridos (até 70
xícaras por dia) afirmou: “Claro que o café é um veneno lento, pois faz
quarenta anos que o bebo e ainda não morri.” No poema “A canção de
amor de J. Alfred Prufrock”, T.S.
Eliot escreveu: “Medi minha vida em
colherinhas de café”. O filósofo escocês James Mackintosh disse que “o
poder da mente de um homem está diretamente relacionada à quantidade de café
que bebe”.
Honoré de Balzac talvez seja o maior adicto ao
café e foi quem melhor escreveu sobre o assunto. François Taillandier, em sua biografia do escritor francês, comenta que
“Balzac é Vulcano em sua fundição, trabalhando duro, suando e arfando, bebendo
litros de café e colocando para fora, num jorro inesgotável, dezenas de
romances que formam um só: Eugénie
Grandet, Ilusões perdidas, Um aconchego de solteirão, César Birotteau, A prima
Bette, O pai Goriot, Esplendores e misérias das cortesãs...” Paulo Ronai,
na introdução de A comédia humana, complementa:
“Atazanado pelas dívidas, pelos prazos marcados para a entrega dos originais; recluso
no silêncio noturno de seu gabinete mal iluminado pelas velas e separado do
resto do mundo, na hipertensão da obra da criação, com a sensibilidade
estimulada por excitantes, acima de tudo inúmeras xícaras de café; sentindo
quase materialmente a pressão de sua imaginação a reclamar vida no papel —
acaba numa exaltação permanente, uma espécie de alucinação provocada.” Consta
que ele dormia às 18h e acordava à meia-noite, quando, estimulado por até 50
xícaras de café, começava a escrever até o início da tarde do mesmo dia.
No texto “Tratado
dos excitantes modernos”, disponível
no Brasil no livro Tratados da vida
moderna (Estação liberdade, 240 páginas), Balzac escreveu sobre o consumo
de estimulantes como o álcool e o tabaco. No capítulo sobre o café, refletiu sobre
a experiência com a substância e propôs formas de obter melhores benefícios do
seu uso, clamando: “Vós, ilustres luminárias humanas (...) se aproximem e
escutem o Evangelho da vigília e do trabalho intelectual!” Uma das maneiras é
mastigar o café moído como pouquíssima água, ou até sem, e em jejum. Depois de
o café cair no estômago, “as
ideias põem-se em marcha no campo de batalha, como batalhões do grande exército,
e a batalha começa. As recordações vêm à galope, o estandarte desfraldado ao vento.
A cavalaria ligeira das analogias lança formidável carga, a artilharia da
lógica apronta as peças e munições, as lâminas do engenho atacam como
atiradores certeiros. Surgem as figuras; o papel é coberto com tinta; a vigília
transcorre entre torrentes de água negra como a pólvora das batalhas”.
Graças
ao café, portanto, podemos hoje ler obras monumentais como A comédia humana. E é essa bebida também que manterá despertos e
estimulará outros tantos escritores que criarão outras obras-primas da
literatura, em vigílias que transcorrerão entre torrentes de bits e bytes.
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