No "Traçando livros" de hoje: Zambra, literatura e cigarro
O prazer do cigarro e da literatura
Ao
professor Norberto Perkoski
“Toma um fósforo.
Acende teu cigarro!”, diz o eu lírico do poema “A última quimera”, de Augusto
dos Anjos, a seu interlocutor, a quem alerta sobre a ingratidão do ser humano.
Convido a quem fuma a fazer o mesmo para ler este texto. Quem não fuma, pode
pegar uma caneta ou outro objeto cilíndrico para fazer as vezes de um cigarro e
o ponha na boca, fingindo dar suas tragadas, e tente entender pelo menos o
prazer de quem fuma. É o que faremos aqui através da literatura, algo tão
viciante quanto o “cilindro branco”.
O mote para o texto
é a publicação de Meus documentos, de Alejandro
Zambra, editado pela CosacNaify, com tradução de Miguel del Castillo. O
livro reúne os contos do chileno (autor de romances como Bonsai, já comentado no Traçado Livros), escritos nos últimos anos,
com um tom memorialístico. O título pode simbolizar as pastas do computador em
que são arquivados os contos, como também pode se referir àquilo que dá
identidade ao indivíduo, como se o escritor dissesse “esse sou eu”. A infância,
as descobertas amorosas, musicais, políticas e religiosas permeiam as
narrativas.
Em “Eu fumava muito
bem”, o narrador relata os últimos dias do tratamento para deixar o cigarro e a
relação do ato com a atividade do escritor. “O último anel de fumaça se desfez
antes de chegar ao teto. Desenhei algo nas cinzas (meu coração?).” Zambra já
havia escrito uma crônica para um jornal sobre sua vida de fumante, “Hermosos
fumadores”, e a utilizou para compor o conto. Impossível não ver, portanto, o
próprio autor no enredo.
“Os cigarros são os
sinais de pontuação da vida. Agora vivo sem pontuação, sem ritmo”, diz o
narrador. O leitor que fuma ou já fumou (este é o meu caso) se identifica com
essa frase. Quem escreve e fuma mais ainda. A relação entre a literatura e o
cigarro é notória. Fotos e filmes com escritores martelando em suas “olivettis”
com o cigarro entre os lábios e envoltos em fumaça fazem parte do nosso
imaginário. Poucos, no entanto, escreveram sobre isso.
Citado no conto de
Zambra, o peruano Julio Ramón Ribeyro escreveu Só para fumantes,
também publicado pela CosacNaify. Notório fumador, que morreu inclusive devido
ao vício, Ribeyro escreve o conto autobiográfico que dá título à obra e em
que cita André Gide (“Escrever é para mim um ato complementar ao prazer de
fumar.”), Thomas Mann, em A montanha mágica
(“Não entendo como se pode viver sem fumar...”), Moliére, em Don Juan ("Diga o que disser
Aristóteles e toda a filosofia, não existe nada comparável ao tabaco... quem
vive sem tabaco não merece viver."), e conta que até vendeu seus livros na
sua juventude em Paris para poder comprar cigarros. Ato extremo de desespero,
que eu jamais faria.
Nessa época do
politicamente correto, em que os fumantes são perseguidos e escanteados,
inclusive na cidade conhecida como a Capital do Fumo, é difícil defender o cigarro,
o charuto, o cachimbo. Curiosamente, muitos dos que se incomodam com o tabaco e
defendem o seu fim em nome da vida, também defendem a legalização da maconha.
Fumar é paradoxalmente um ato de liberdade, pois as pessoas acabam presas no
vício. O que não foi o meu caso (momento “egotrip” agora) quando fumava
(escondido) na adolescência, apesar de muitas vezes ter juntado restos de
cigarro para fazer um palheiro. Hoje não fumo mais, mas sou como a protagonista
do meu romance, Os óculos de Paula: “Paula se dizia ‘fumante
passiva assumida’. Não se importava com a fumaça expelida pelos amigos, achava
até esteticamente bonito vê-la rodeando o rosto das pessoas em contraste com a
luz do restaurante. Imagem que não se poderia mais ver devido às restrições ao
cigarro”.
Daqui a alguns anos,
o cigarro será definitivamente proibido. Espero que não aconteça o mesmo com a literatura,
mas não descarto essa possibilidade. A literatura incomoda os outros, como o
cigarro, mas, ao contrário deste, ela não esconde o rosto com a fumaça e sim
revela quem somos. É o nosso documento.
Cassionei Niches Petry é escritor e ex-fumante.
Autor de Arranhões e outras feridas (Editora Multifoco) e Os óculos
de Paula (Editora Autoral). Escreve regularmente para o Mix e mantém um
blog, cassionei.blogspot.com.
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