Minha crônica "Tempo para ler" na Gazeta do Sul de hoje
Tempo para ler
Um episódio antigo
do seriado “Além da imaginação”, do final dos anos 50, conta a história de um
caixa de banco, Henry Bemis, apaixonado por leitura e que queria ter mais tempo
para ler. Atrapalhava-se no trabalho, tinha conflitos com a esposa, que implicava
que ele parava para ler até o rótulo do catchup. Por tudo isso, tornou-se um homem
antissocial.
Um dia, porém,
enquanto aproveitava a hora do almoço e se refugiava no cofre do banco para ler
em paz, uma bomba nuclear atingiu a cidade e ele se tornou o único
sobrevivente. Procurou a biblioteca pública e mergulhou nos livros que ficaram
intactos e se regozijava por agora ter todo o tempo do mundo para ler aquelas
maravilhas. Por azar, no entanto, acabou deixando cair seus óculos de grossas
lentes, que se quebraram.
A personagem da
série é um paradigma de vários ratos de biblioteca que perdem seu precioso tempo
de leitura para o trabalho. Ó, maldito trabalho! Quantos livros deixei de ler
por sua causa! Quantas personagens ficaram abandonadas porque tinha que estar
atendendo telefonemas, conferindo notas fiscais, fechando caixas ou atendendo
pessoas reais! Horas preciosas que poderiam servir para apenas ler, ler e ler.
Ah, se tivesse mais tempo para ler!
O tempo escorre
pelas mãos, já diria a canção. O tempo devora tudo, nos diz o mito. Há na minha
biblioteca uma pilha de livros que precisam ser lidos. Cada vez a pilha vai
aumentando e alguns volumes acabam indo para as prateleiras para serem lidos,
com muita sorte, somente nas férias. Alguns furam a fila. Há muitos lançamentos
para ler, assim como há muitos clássicos que não foram ainda degustados. Mas
onde o tempo para tudo isso!
Só no ano passado
comecei a anotar a quantidade de livros lidos por inteiro. Em 2014, foram 100
exemplares devorados, fora os abandonados. Como é quase impossível eu ganhar na
Mega Sena e ter mais tempo para ler, devo seguir essa média anual. Ainda
pretendo aumentá-la. Nesse ritmo, se eu chegar aos 80 anos, terei lido mais de
4 mil livros. É pouco, muito pouco para as minhas pretensões literárias.
Lógico que, até lá,
estarei aposentado da minha função atual de professor. A conta aumentará um
pouco. Mas e se eu não chegar aos 80? E se uma bala perdida me tirar a vida? E
se um carro me atropelar? Ou se eu morrer soterrado pelos livros da minha
biblioteca? (Convenhamos que seria uma morte muito linda.)
Ou seja, não dá para
planejar. É preciso ler sem pensar no tempo. O relógio e o calendário são
inimigos da leitura. Basta abrir o livro e ler. O tempo deixa de existir. O
tempo dentro do livro é outro. Se não pensarmos assim, jamais leremos.
Há quem vê o tempo como
desculpa para não ler. Não consigo entender como as pessoas preferem dormir a
ler. Como preferem novela em vez de livro. Como preferem debruçar-se sobre
telas do celular no lugar de ficarem corcundas em nome da leitura.
Aliás, já perdi
muito tempo escrevendo esta crônica. Voltarei à leitura. Há um Roberto Bolaño
me esperando.
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