A pequena grande obra de Josefina Vicens
Josefina Vicens (1915-1988), assim como seu conterrâneo Juan
Rulfo, publicou apenas dois livros. O
suficiente, porém, para fazer dela um grande nome da literatura mexicana, apesar
de se notabilizar muito mais pelo trabalho jornalístico (assinando, com
pseudônimos masculinos, crônicas sobre touradas) e pelos roteiros de cinema.
Mesmo assim, não alcançou o reconhecimento obtido pelo autor de Pedro Páramo e El llano en llamas, por isso não temos traduções da sua obra por
estas bandas.
Conheci a escritora pelo seu segundo romance, Los años falsos, de 1982, uma curta narrativa daquelas que te agarram já no
primeiro parágrafo, numa construção que leva a pensar que o narrador é um
defunto, tal qual Brás Cubas, contando a visita de sua família, ele junto, ao
seu próprio túmulo. “Todos viemos me ver” é a primeira frase, numa tentativa de
tradução minha. Na verdade, é seu pai que está ali enterrado, personagem em
quem se espelha e passa a seguir todos os passos que teve em vida, como se
tivesse tomando o seu lugar, de chefe de família (composta agora, além dele,
somente por mulheres: a mãe e as irmãs gêmeas), de amigo de bar, ajudante de
deputado e, por fim, na cama da amante. Todo o enredo é contado pelo personagem
falando com o pai à beira do túmulo, ora usando a 1ª pessoa do singular, ora a
1ª do plural, numa tensão crescente, indo da identificação incondicional até
chegar à repulsa à figura paterna por lhe ter provocado a perda da identidade.
Vinte e quatro anos antes, em 1958, seu primeiro romance
vinha a público, El libro vacío. Interessei-me
por esse livro porque tem como narrador e protagonista um escritor, José
García, um dos tantos que querem escrever, mas não conseguem, porém enchem cadernos
e mais cadernos com reflexões sobre os seus fracassos, na literatura e na
própria vida. Somos todos José García, um funcionário de escritório de
contabilidade que sente necessidade de escrever, mas não consegue. “Comprei
dois cadernos. Assim não poderei terminar nunca. Insisto em escrever neste o que
depois, se considero que possa interessar, passarei ao número dois, já selecionado
e definitivo. Mas a verdade é que o caderno número dois está vazio e este quase
cheio de coisas imprestáveis.” (Mais uma tentativa de tradução minha.)
Seria mais fácil não escrever, diz García, mas ainda assim continua
escrevendo, falando sobre a mulher, compreensiva ao extremo e suporte da casa;
sobre seus filhos, que não terão a oportunidade de ver seu pai como grande
escritor; sobre os colegas de trabalho; sobre uma amante que aparece pelo
caminho; sobre a própria escrita, que não anda. (“Sempre o que me afeta, o que
me importa. Sempre o mesmo, como um ruminante. Creio que precisamente por isso
não pude começar livro”) Os anos passam, o caderno vazio permanece vazio. O
primeiro caderno, porém, vai sendo preenchido, páginas e páginas falando sobre
a sua própria vida, sobre a qual não queria escrever, “só para dizer que meu
mundo é reduzido, plano e cinza; que jamais me aconteceu nada de importante;
que minha mediocridade é evidente e total”.
Numa entrevista, Josefina Vicens disse que “escrever é
entrar no inferno branco” e que El libro
vacío é autobiográfico. A necessidade de escrever, impossibilidade de escrever,
o que escrever, se o que se escreve vai servir para alguma coisa, o não escrever,
se vão ler o que o escritor escreveu, enfim. O escritor preenche vazios, mas
não consegue preencher o seu vazio. Ou, como escreve José García no seu
caderno, “esse vazio está cheio de mim mesmo”.
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