Traçando Livros de hoje é sobre romance de Cabrera Infante
“Recuerdos” de Infante
Na manhã em que iniciei a leitura de Corpos divinos, de Guillermo Cabrera Infante (Companhia
das Letras, tradução de Josely Vianna Baptista), os noticiários repercutiam os atentados
terroristas em Bruxelas, na Bélgica. Por coincidência, o escritor escreveu as
primeiras páginas do romance quando era adido cultural de Cuba na capital belga,
em 1962, antes de romper com o governo de Fidel Castro. As coincidências,
porém, não terminam por aí.
Enquanto lia e escrevia as notas que resultariam nesta
resenha, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, fazia uma visita
histórica à Havana, capital cubana. Uma imagem de sua chegada à terra governada
agora pelos irmãos Castro, no entanto, foi o que mais me chamou a atenção.
Enquanto o Air Force One descia em
solo cubano, pessoas na rua, escoradas em seus carros antigos, observavam a
aeronave moderna sobrevoando a cidade. A capa do livro de Cabrera Infante
estampa uma fotografia de 1963, feita pelo suíço René Burri, em que um carro
bem parecido com os atuais veículos cubanos dobra uma esquina de Havana.
René Burri, a propósito, também fotografou Che Guevara, uma
das personagens reais mencionadas em Corpos
divinos. “Deparamos com um homem de estatura mediana, de barba completa,
ainda que rala, e muito parecido com Cantinflas.” Mais do que um romance, é um
conjunto de memórias do jovem Cabrera Infante no final dos anos 50, nos
momentos decisivos que culminaram com a revolução que tirou Fulgêncio Batista
do poder. O narrador é jornalista cultural, mais precisamente crítico de
cinema, e conta os bastidores do mundo cultural pré-Fidel, percorre a noite
cubana (“−Tudo é possível na noite de Havana – era uma frase que eu costumava
usar com frequência)” e narra suas várias conquistas amorosas, mesmo sendo um
homem casado e com filhos. Nas 100 páginas iniciais, as melhores do livro, nos
divertimos com as peripécias por que passa para manter o relacionamento com
Elena, jovem de 16 anos, história também contada no romance, também póstumo, A ninfa inconstante. Depois tenta
conquistar Ella, uma atriz que se tornará a paixão de sua vida toda. As suas
aventuras sexuais são descritas com detalhes, numa carga erótica muito bem
dosada.
Em outro momento de suas memórias, lemos sobre os peculiares
encontros com Ernest Hemingway. O episódio mais engraçado acontece em um barco onde
acompanham as filmagens da adaptação de O
velho e o mar, obra-prima do escritor norte-americano, que num determinado momento
anuncia que irá fazer o “number two”
nas águas: “(...) Hemingway cagava no mar, como sua defecação contaminava a
corrente do Golfo, como suas excreções execravam o oceano”.
O aspecto político fica como discreto pano de fundo até
quase no final do romance. Assume proporções maiores, no entanto, quando o
narrador resolve participar mais ativamente dos movimentos contra a ditatura de
Batista: “eu sentia a futilidade da minha vida, agora que Ella tinha criado uma
grande ausência, e comecei a me perguntar se não seria melhor abandonar tudo e
ir para a Sierra”, onde, é preciso lembrar, ficavam os revolucionário liderados
por Fidel Castro.
Essa “biografia velada”, segundo expressão do próprio autor,
foi escrita e reescrita durante mais de 40 anos e ficou inacabada. Da mesma
forma, a relação do escritor com Cuba jamais foi concluída. Guillermo Cabrera
Infante nasceu em 1929 e morreu em 2005, em Londres, no exílio. Morreu sem
poder rever seu país.
Cassionei Niches Petry
lê e escreve para se tornar um escritor à altura de um Cabrera Infante. Enquanto
isso não acontece, trabalha como professor, além de manter um blog, www.cassionei.blogspot.com.
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