Nem eu me entendo
Sou um cara que não
viu e não gostou. Sou um cara que escreve à mão e depois não entende o que
escreveu. Sou um cara que escuta, mas não houve direito, cheira sem reconhecer
os aromas e tem o paladar apurado que não difere o gosto de uma salada de
maionese de batata da salada de maionese de mandioca. Assiste a um filme e
esquece o que assistiu, lê livros e esquece o que leu, ouve música e depois, quando
a ouve pela segunda vez, não lembra se a já tinha ouvido antes.
Sou um cara humilde
e genial. Sou um cara cuja beleza é feia e a feiura bonita. Sou um cara que tem
ideias maravilhosas que não servem para nada. Sou um cara cuidadoso que derruba
tudo que encontra pelo caminho, fuma cachimbo, depois chupa Halls para não
ficar com o gosto do fumo na boca, gosta do frio, mas é friorento, toma café forte,
mas com bastante açúcar.
Sou um cara ateu que
acredita em um deus, Kafka, um deus todo-poderoso e fracote, cuja grandiosidade
está em ser um inseto inferior e cuja coragem é ter medo do mundo. Sou um cara desorganizado
que gosta de tudo no seu devido lugar, que é justamente o lugar onde não consegue
encontrar o que deseja. Sou um cara persistente que desiste no primeiro tombo.
Sou um cara que pensa sempre no suicídio, porém jamais pensou em se suicidar,
pois ama tanto a vida que chega a ter ódio de viver.
Sou um cara cuja
memória é impecável, se lembra de tudo, por isso se esquece de lembrar alguma
coisa, pois se lembra que tinha de se lembrar de outra coisa antes. Aliás, não estou
lembrando sobre o que iria escrever agora.
Sou um cara rebelde
e conservador. Sou um cara que olha para frente e para trás. Sou um cara que
preza a liberdade de ficar preso dentro de casa. Sou um cara que ama estar com
a família e com os amigos, mas quando está com a família e com os amigos,
gostaria de estar lendo ou escrevendo na sua biblioteca.
Sou um cara decidido
a ser indeciso. Sou um cara que gostaria de ser lido por muitas pessoas,
entretanto não escreve para agradar o leitor. Sou um cara como o eu lírico de
Camões, que sente uma dor que não dói, que anda solitário entre as pessoas, que
perde quando ganha e jamais ganha quando perde.
Sou um cara,
portanto, igual a todo mundo justamente por ser diferente de todo mundo, por
gostar de coisas diferentes como todo mundo, por pensar diferente como todo
mundo pensa, por viver diferente como todo mundo vive. Sou um cara, portanto,
que gostaria de ser compreendido, no entanto nem entende a si próprio. Sou o
cara que escreveu essa crônica e chegou à conclusão de que não deveria tê-la
escrito, muito menos deveria publicá-la. E se você está lendo, leitor, é porque
esse cara perdeu o controle de si mesmo. Pode condená-lo, mas o perdoe depois.
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