Quem é mesmo massa de manobra?
A música “Admirável
gado novo”, de Zé Ramalho, é sempre utilizada por defensores de algumas
ideologias para criticar pessoas que, segundo eles, vivem metaforicamente uma
“vida de gado”, seguem a manada sem questionar, são massa de manobra, marcados
pelos poderosos que são os donos de suas mentes. O engraçado disso tudo é que a
música serve também para esses mesmos críticos que defendem cegamente ideias de
um partido (ou de partidos que se desmembraram do próprio partido), repetem
palavras de ordem, repercutem notícias falsas, leem somente autores que seus
partidários sugerem, ignoram acusações contra seus confrades (mas ampliam as
denúncias contra os adversários) e reproduzem um pensamento único, que não deve
ser questionado.
A composição do
artista paraibano, autor de outros clássicos de nossa canção, como “Avôhai” e
“Chão de giz”, foi inspirada no romance Admirável
mundo novo, de Aldous Huxley, publicado em 1932. No enredo, num futuro não
muito distante, as pessoas nascem em laboratórios e têm os genes condicionados
para assumirem funções preestabelecidas na sociedade. Após, são vítimas de condicionamento
psicológico. O intuito é que o “cidadão” torne-se o que os governantes querem
que ele se torne. Suas ações, portanto, seguirão regras já previamente estipuladas,
desde o que comprar, no que trabalhar, como e com quem se relacionar, os modos
de se divertir e até a droga que se deve usar. Apesar de controladas, as
pessoas são felizes. Nunca, entretanto, são incentivadas a ter pensamento
próprio. Fazer parte do rebanho, ser uma ovelhinha feliz, pronta para ser
devorada pelo lobo, é com isso que as pessoas estão acostumadas: “(...) homens sãos de espírito,
obedientes, satisfeitos em sua estabilidade.”
Nietzsche, por seu turno,
escreveu, em Além do bem e do mal,
que os seres humanos possuem “a moral de animais de rebanho”. Para esses
cordeirinhos, "a única moral sou eu e não há outra moral além de
mim!" O filósofo alemão se refere à religião. Se
pensarmos, porém, que muitos tomam seu partido como seita, seus líderes como
santos imaculados e suas frases feitas como dogmas, a analogia também faz
sentido para as questões ideológicas. Deixamos a condição de humanos ao sermos
levados para o abate, agindo conforme determinam as cabeças de movimentos que
se sustentam justamente pela ideia de coletividade.
Observo
nas redes sociais uma onda de pensamento que segue padrões coletivos,
organizados, que invadem de maneira ofensiva comentários de postagens daqueles
fogem à regra. Uma das máximas é que o indivíduo que ousou dizer algo diferente
deve ler mais, ficando subtendido que a leitura deve ser de acordo com a
cartilha de espectro ideológico e partidário de quem ataca. Leitura diferente
disso não vale.
O
filósofo espanhol Ortega y Gasset, no seu clássico A rebelião das massas (que tem edição recente pela Vide Editorial),
escreve que “massa é aquele que não se valoriza a si mesmo” e que “se sente à
vontade ao sentir-se idêntico aos demais”. É bom fazer parte da massa quando
queremos apenas nos divertir, como num show de uma banda de rock, em que
fazemos tudo o que vocalista no palco nos manda fazer (Freddie Mercury
conduzindo o público nas apresentações do “Queen” era algo hipnotizante).
Quando envolve política, porém, seguir a massa nas ruas é ser gado levado para
o abate, ser de massa de manobra pensando que está deixando de sê-lo. As ruas
são a baia que confina. Sair da baia é a verdadeira rebeldia.
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