O escritor que ainda não ganhou o Nobel
O Traçando Livros de
hoje poderia ser sobre um Prêmio Nobel de Literatura. Javier Marías é sempre um
dos cotados para ser laureado, porém a academia sueca, neste ano, resolveu
prestigiar o cantor Bob Dylan, que produz poesia para suas músicas, mas não faz
literatura. Seria uma longa discussão que não vou realizar aqui, pelo menos não
na coluna de hoje. Marías tem uma obra sólida, construída ao longo dos anos de
forma impecável, elabora a palavra artisticamente para ser publicada em livro. Faz
grande literatura, portanto, assim como Philip Roth, também ignorado pelo
Nobel.
Assim começa o mal, lançado recentemente pela Companhia das Letras, com tradução de
Eduardo Brandão e generosas 520 páginas, é um título retirado de versos de Hamlet, peça de Shakespeare. O bardo
inglês é uma referência na obra de Javier Marías e, dessa forma, a voz do
fantasma do pai de Hamlet me soprava a todo o momento para fazer uma leitura do
romance como tragédia teatral. E aí poderia surgir outra questão: por que letra
de música não pode ser literatura e o roteiro teatral sim? Tenho minha
resposta, mas não cabe discutir agora.
No palco montado em
minha mente, temos o narrador em 1ª pessoa, que ora se dirige para o público,
ora dialoga com os outros personagens. Juan de Vere relembra uma fase marcante
de sua vida quando, com vinte e três anos, trabalha como secretário particular de
um diretor de cinema, Eduardo Muriel, servindo como assessor na tradução dos
roteiros. É início dos anos 80 na Espanha e o país vive o momento posterior à
ditadura de Franco, época de retomada da liberdade antes sufocada. Indo morar
temporariamente na casa do seu empregador, De Vere conhece a esposa de Eduardo,
Beatriz Noguera, que vive numa situação complicada com o marido. Dormem em
quartos separados, mas não se divorciam, atitude até aquela data ainda proibida
mesmo depois do regime franquista. Outro teatro dentro do teatro, com o jovem
sendo o único membro da plateia, esperando descobrir qual o segredo que separa o
casal.
Os conflitos do
enredo começam a partir de um pedido de Muriel para o narrador: que se
aproximasse de um amigo, o médico Jorge Van Vechten, para descobrir se era
verdadeira uma informação sobre sua conduta no passado, mais precisamente seu
comportamento com uma determinada mulher. De Vere, então, passa a levar o
doutor para a noite pulsante de Madrid, tendo contato com mulheres mais novas,
despertando no velho homem os seus desejos juvenis. Enquanto, isso, obcecado
por Beatriz, De Vere começa a segui-la em suas andanças pelas ruas da cidade e
mais uma vez é plateia, agora de uma cena na janela de um santuário católico.
Leia e “verá” a cena, caro leitor.
Javier Marías conduz
com maestria a narrativa. As frases longas, bem como as digressões filosóficas
do narrador, fluem de tal maneira que, mesmo com a complexidade dos temas (o
segredo, a verdade revelada, as armadilhas da verdade, o silêncio de quem sabe,
o suicídio) o leitor não se perde na rede tecida pelo escritor. A tragédia vai
sendo urdida e, sem nos darmos conta, ela acontece e irrompe, deixando-nos
perplexos diante do resultado. As atitudes discutíveis das personagens revelam
algo do ser humano que nos é inato e é isso também que faz de Assim começa o mal uma obra-prima,
dentre tantas escritas por Marías.
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