Crítica sobre "O elefante desaparece", de Haruki Murakami


Escrevi no blog do Gustavo Nogy na Gazeta do Povo sobre o livro de contos "O elefante desaparece", de Haruki Murakami (Editora Alfaguara):
http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/gustavo-nogy/2018/05/09/para-ler-na-madrugada-de-olhos-bem-abertos/


Para ler na madrugada, de olhos bem abertos
Por Cassionei Niches Petry

Haruki Murakami seria um daqueles escritores que estaria longe dos meus planos de leitura. Não exatamente por seu um best-seller. Não tenho esse preconceito, porque antes de desprezar um autor por vender muito, procuro ler opiniões sobre ele. O escritor japonês divide a crítica e isso é bom, pois mostra que há algo a ser explorado.
Comecei com a leitura da trilogia 1Q84, afinal há a referência ao clássico de George Orwell e também porque traz escritores como os protagonistas, temática que me atrai. Foi uma escolha acertada. Apesar de algumas passagens dispensáveis, certo didatismo e elementos de fantasia que beiram o infantil, a narrativa me provocou, me inquietou, me incomodou. É o que busco na literatura.
O segundo livro que li de Murakami é considerado sua melhor obra: Crônica do pássaro de corda. É uma “viagem ao fundo do eu”, um tratado sobre as mais recônditas estâncias da nossa psique simbolizada ora num beco, ora num poço, pessoas que cruzam por nosso caminho, o tempo que passa e a guerra que nos destrói.
Justamente o primeiro capítulo desse romance gera o conto que abre a coletânea O elefante desaparece (Alfaguara, 301 páginas, tradução de Lica Hashimoto), lançada antes de Crônica... no Japão e aqui depois do romance.  O relato recebe o título “O pássaro de cordas e as mulheres de terça-feira” e, lido isoladamente, ganha uma nova perspectiva. No entanto, para quem leu a narrativa que deu prosseguimento à história, todas as possibilidades de interpretação do enredo tornam-se limitadas, pois já se sabe o que vai acontecer com o protagonista depois de sair à procura do seu gato Noboru Watanabe, que recebera o nome em homenagem ao irmão da esposa do narrador.
O nome Noboru Watanabe, diga-se, é um nome recorrente. Mais dois personagens da coletânea de contos recebem a mesma denominação. Em “Caso de família” também é Noboru Watanabe o cunhado do narrador, assim como o tratador que some junto com o elefante que dá título ao livro. Ao que parece, são personagens inspirados num cunhado do próprio Murakami, do qual ele não gostava muito.
Meu conto preferido da coletânea também já é conhecido pelos fãs do autor. “Sono” foi lançado pela Alfaguara em um volume com ilustrações de Kat Menschik, porém eu não o havia lido. A protagonista e narradora, há 17 noites sem dormir, acaba levando uma vida paralela durante o tempo em que está desperta. Antes cuidando apenas do lar, do marido e do filho, numa vida monótona (“Se eu trocasse o ontem pelo anteontem, não faria diferença alguma.”), o fato de estar acordada parece que faz despertar o outro lado dela antes escamoteado. Durante a madrugada, passa a ler livros como fazia antes de casada (não por acaso o livro escolhido é Anna Kariênina, de Tolstói) e também volta a beber. São as saídas de casa, porém, que podem não trazer um bom desfecho para a personagem.
Outro conto muito bom é “O segundo assalto à padaria”, em que um casal comum acorda de madrugada (as madrugadas de Tóquio são recorrentes nos contos do livro) com muita fome e decide assaltar uma padaria depois de o marido contar sobre um de seus atos delinquentes da juventude. Acontece que os dois encontram apenas uma loja do McDonald’s aberta:
“−Vamos assaltar aquele McDonad’s – ela decidiu, com a naturalidade de quem anunciava o menu do jantar.
− O McDonald’s não é uma padaria.
− É como se fosse – retrucou ela, e voltou para o carro. – Às vezes é necessário fazer concessões. Vamos.”
No geral, há contos medianos, parecendo mais esboços de obras que Murakami não levou adiante. Ainda assim, é uma leitura que se torna prazerosa devido à exploração da linguagem. Em um dos contos, o escritor propositalmente exagera nos símiles, como se percebe neste exemplo: “minha memória é boa e confiável como a tampa de um forno de fundição”. Ou neste: “Uma placa fina e comprida se dobrava em noventa graus, como um entusiasta do sexo anal.” É esse tipo de estranhamento que me incomoda. Mais um ponto positivo para Murakami até agora. Resta encarar os outros calhamaços do autor e comprovar se o japa realmente é bom.

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