Do canto ao silêncio das sereias
No
imaginário atual, as sereias são consideradas como criaturas híbridas, metade
mulher e a outra metade peixe. Nas mitologias grega e romana, no entanto, são
mulheres com corpo de ave. Há representações em vasos antigos que trazem a
imagem delas voando ao redor do barco de Ulisses, num dos episódios marcantes
da Odisseia, de Homero. Curiosamente,
Junito de Souza Brandão, no primeiro volume de seu livro Mitologia grega (Editora Vozes), explicita, mas não explica, essa
confusão:
Os povos do Mediterrâneo viam
geralmente a alma sob a forma de um pássaro, o que faz que as Sereias e a
Esfinge sejam “músicas", como todas as suas irmãs que cantam e
"encantam" perigosamente. No canto XII, 184sqq. da Odisseia,
Ulisses
consegue escapar à sedução das Sereias, cuja voz irresistível
"encantava" suas vítimas para devorá-las. Como sentiam o
"desejo", mas não podiam realizá-lo, por serem peixes, frias,
portanto, da cintura para baixo, bebiam o sangue dos que atraíam com seu canto.
Pierre
Grimal, por sua vez, afirma, em seu Dicionário
da Mitologia Grega e Romana (Editora Bertrand Brasil), no verbete
“Sirenes”, variante para o termo em português de Portugal, que “são gênios marinhos, metade mulheres,
metade pássaros”. No Dicionário de
Símbolos (José Olympio Editora), de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, há
uma elucidação sobre o termo: “Monstros
do mar, com cabeça e tronco de mulher, e o resto do corpo igual ao de um
pássaro ou, segundo as lendas posteriores e de origem nórdica, de um peixe.”
Já René Menard, em Mitologia Greco-Romana
– vol. I (Ed. Opus), nos traz ou outra vertente: “Os artistas dos últimos séculos têm
confundido as Tritônidas com as Sereias. Mitologicamente, a diferença é enorme:
as Sereias são mulheres de corpo de ave, as Tritônidas mulheres de corpo de
peixe.”
Ovídeo,
em As metamorfoses, explica porque
elas possuem essa forma:
Vós, porém, filhas de Aquelou, de
onde vieram as vossas penas e as vossas patas de aves, quando tendes os rostos
de donzelas? Terá sido porque Prosérpina colhia as flores primaveris, estáveis
em sua companhia, ó doutas Sereias? Depois de ter em vão procurado por toda o
orbe, e de também o mar ter sido objeto de vossa preocupação, resolvestes
flutuar acima das ondas, tendo as asas como remos; os deuses vos foram
propícios, e vistes os vossos membros se cobrirem subitamente de penas
amarelas. No entanto, para que o vosso canto, nascido para deliciar os ouvidos,
para que esse dom não se perdesse juntamente com o uso da palavra, permaneceram
vossos rostos virginais e voz humana.
O que se
pode ter certeza é de que no mito elas não eram seres amáveis e inocentes como
a pequena sereia do conto de Andersen, dos desenhos animados, filmes ou da
novela de televisão. As lendas semelhantes de outros lugares, como a da Iara ou
Mãe d’Água, no folclore brasileiro, apenas reforçam o caráter sedutor e
destrutivo das criaturas. Deveríamos manter distância delas? Deveríamos fechar
os ouvidos para o seu canto?
Antes de
Ulisses, conta-se que o navio Argos, na expedição em busca do Velo de Ouro, passou
pela ilha das Sereias, que ficava no Mar Mediterrâneo. Orfeu, no entanto, tocou,
com sua lira, uma melodia muito mais bela do que a música das criaturas e, por
conseguinte, os Argonautas não foram atraídos para as rochas, com exceção de um
deles, chamado Butes, que devido a sua beleza foi salvo depois das profundezas
do mar por Afrodite. Ao praticar uma arte mais bela, Orfeu simboliza uma forma
de resistência à mediocridade.
Ulisses,
ou Odisseu, era curioso, queria ouvir o canto das Sereias. Depois de voltar do
Hades, foi alertado por Circe que elas seriam a primeira prova pela qual teria
que passar para voltar à Ítaca, antes de enfrentar Cila e Caribde:
Encantam
todos os que porventura passam por elas.
Quem
inadvertidamente se entregar ao canto
delas
nunca mais retornará ao lar, nunca mais cairá
nos
braços da mulher, não verá os pequerruchos
nunca
mais. Elas enfeitiçam os que passam,
acomodadas
num prado. Em torno, montes de
cadáveres
em decomposição, peles presas a ossos.
Evita
as rochas. Tampa com cera os ouvidos
dos
teus companheiros para não caírem na
armadilha
sonora. Se, entretanto, quiseres o
o
mel do concerto delas, ordena que te amarrem
de
pés e mãos ereto no mastro. Que o nó seja
duplo.
Entrega-te, então, ao prazer de ouvi-las.
(Tradução de Donaldo Schüler,
L&PM Editores.)
Foi exatamente o que aconteceu. E
ele então ouviu os versos sedutores:
Pra
perto, preclaro Odisseu, pra perto, brilhante
aqueu,
nosso hino delicie de perto o teu coração.
Todos
nos ouvem. É a regra. Sem nos
ouvir
ninguém passou aqui em nau negra.
Com
nosso saber prossegue mais pleno. Do que
se
passou nos campos de Tróia sabemos tudo
por
divino favor, os padecimentos de troianos
e
argivos, mais o ocorrido na prolífera terra.
Ulisses
tentava se livrar das cordas, mas seus companheiros, devidamente impedidos de
ouvir o canto devido à cera nos ouvidos, foram firmes em não soltá-lo e apertavam
mais ainda os nós. Bons amigos nos livram de músicas indesejadas, bons amigos
nos alertam, nos livram do perigo. Não por acaso, a expressão “se deixar levar
pelo canto da sereia” ganhou a conotação de se deixar ser arrastado para o mal
caminho, como o das drogas, por exemplo.
Para
Pierre Vidal-Naquet, em O mundo de Homero
(Companhia das Letras), “a poesia tal
como a escrita, é coisa perigosa”, sendo que a Odisseia nessa passagem faz uma “reflexão
sobre a função do aedo, sobre sua grandeza e os perigos que ele pode
representar”.
A música
(e toda forma de arte) nos seduz e às vezes nos desvia de objetivos mais
práticos do dia a dia. Quantos alunos vejo a minha frente com seus fones de
ouvido no último volume e que, por isso, não estão prestando atenção nas
lições? Machado de Assis já nos alertava sobre esse canto da sereia no seu
“Conto de escola”.
O narrador é o menino Pilar, que assume estar longe de ser “um
menino de virtudes”, pois cabula a aula e só vai ao colégio para não apanhar
mais do pai. Depois de aceitar uma moeda de prata do colega Raimundo, para “uma
troca de serviço”, que seria explicar “um ponto da lição de sintaxe” e ser
descoberto devido a uma delação de outro colega, acaba apanhando, dessa vez do
professor (lembrando que a história se passa no século XIX). No outro dia,
Pilar mata a aula de novo, dessa vez seduzido por um batalhão de soldados
marchando ao som de um tambor. Conclui a narrativa se explicando: “a pratinha era bonita e foram eles,
Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da corrupção,
outro da delação; mas o diabo do tambor...”
Pilar foi seduzido por dois cantos das sereias: o do dinheiro
fácil em troca de favores, como nossos políticos, e a música, que para os
estudantes de hoje é o “tamborzão” do “pseudo funk carioca”, que destroça os
cérebros assim como as criaturas mitológicas faziam com os inocentes
marinheiros.
Franz Kafka, no começo do século XX, reescreve o mito. À maneira
kafkiana, obviamente. Para Modesto Carone, “os mitos são objeto da meditação artística, em geral
irônica, do criador de O processo”. Em “O
silêncio das sereias”, Ulisses não só é amarrado ao mastro do barco, como
também enche seu ouvido de cera. O poeta Nelson Ascher, em postagem recente em
uma rede social, chegou a levantar a hipótese de que foi um equívoco do
escritor, o que me instigou a pesquisar sobre o assunto e escrever este breve ensaio.
Realmente, os principais leitores de Kafka parecem ignorar esse detalhe, e
acabam enfocando mais o fato de as sereias não entoarem seu canto.
“Mas eis que então
as sereias mostram ter uma arma ainda mais terrível do que o canto: a de seu
silêncio”, diz o narrador do conto (aqui na tradução de Marcelo Backes,
em Blumfeld, um solteirão de mais idade e
outras histórias, Editora Civilização Brasileira). “Embora não tenha acontecido, talvez possa ser imaginado que alguém se
salvou de seu canto, mas de seu silêncio com certeza não.”
Ulisses não ouve, as sereias não cantam. A inversão do mito nos
coloca contra a parede. A literatura de Kafka sempre nos faz isso. Às vezes o
leitor, como o Ulisses do conto, tenta ignorar o canto da sereia da Literatura,
quer passar longe da arte nessa odisseia que é a vida, deseja o mais
confortável. Faz ouvidos moucos, como se dizia antigamente. Os artistas, então,
desistem de praticar sua arte (“...assim
que Ulisses chegou, as formidáveis cantoras não cantaram, fosse porque
acreditassem que esse inimigo pudesse ser vencido apenas com o silêncio, fosse
porque a visão da felicidade no rosto de Ulisses – que não pensava em nada a
não ser em cera e correntes – fizera com que elas se esquecessem de todo o seu
canto”), se entristecem por causa da indiferença pela sua obra (“Ulisses, porém, para expressá-lo de modo
simples, não ouviu o silêncio das sereias, achou que elas estivessem cantando e
que ele apenas estava protegido de ouvi-las. Fugidiamente, viu primeiro os
movimentos de seu pescoço, a respiração profunda, os olhos cheios de lágrimas,
a boca semiaberta, mas achou que isso fazia parte das árias que se perdiam em
torno dele sem ser ouvidas”) e tentam outras formas para atrair o público,
apelando para a dança, por exemplo (“Elas,
no entanto – mais belas do que nunca –, se esticaram e se contorceram, deixaram
os cabelos terríveis balançar soltos ao vento e cravaram as unhas livremente no
rochedo. Não queriam mais seduzir, mas apenas capturar o reflexo dos grandes
olhos de Ulisses por tanto tempo quanto lhes fosse possível”). Ou então pode-se
dizer que Ulisses é o crítico literário senhor da razão (“À sensação de tê-las vencido com suas próprias forças e à arrogância
que tudo leva de arrasto resultante disso, nada há na terra que possa resistir”)
e, apesar dele, o artista continua criando (“Se as sereias tivessem consciência, teriam sido aniquiladas, na
época. Sendo como foi, no entanto, elas continuaram ali, apenas Ulisses lhes
escapou.”) à procura de outro crítico que o reconheça.
Outros contos de Kafka tratam da dolorosa relação do artista com
seu público, como “O artista da fome” e “Josefine, a cantora, ou O povo dos
camundongos”. “O silêncio das sereias”, de certa forma, representa o próprio
autor que não recebeu ainda em vida o reconhecimento que merecia. Talvez por
isso pediu ao amigo Max Brod que queimasse seus inéditos (inclusive esse mesmo
conto). Brod, para nossa sorte, tapou seus ouvidos para o pedido.
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